terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

[conto #058] Manequim

MANEQUIM

Desde o início dos tempos, sabe-se que as meninas, ao contrário dos homens, já nascem com o coração de mulheres.
Fernanda descobriu isso aos seis anos.
Era um dia da estação de sol, e sua mãe a levara para fazer compras na cidade. Já haviam adentrado várias lojas e comprado várias coisas, mas para Fernanda tudo era desinteressante. Ela só percebia o calor, a fumaça dos carros, e a vontade crescente de voltar para casa.
Mas sua mãe continuava a andar, entrando em todas as lojas pelo caminho.
Afinal, elas chegaram àquela que seria sua última loja. Entraram. A porta se fechou atrás delas.
E então Fernanda o viu.
Ele estava em um canto, voltado para o corredor da loja. Era pouco maior do que ela, e parecia estar esperando que ela fosse até ele. Era branco como o gesso e seus olhos vazios pareciam estranhamente vivos.
Fascinada, Fernanda se aproximou.
Ele era tão bonito. Tão friamente perfeito. E ela percebeu que precisava tê-lo, ali, agora, para sempre.
— Fernanda - sua mãe disse, trazendo-a de volta ao mundo real - não encosta no manequim.
Manequim. É claro. Claro que ela sabia que o menino bonito era um manequim. Sabia desde o início.
Mas ele continuava a ser irresistivelmente atraente, e antes que percebesse o que estava fazendo, Fernanda estendeu a mão e tocou seu rosto. Era frio e plástico e sem vida, mas havia algo nele, uma energia, que só ela sentia e que parecia corresponder aos seus sentimentos.
Eu queria tanto, manequim, que você fosse de verdade.
Adultos riam ao redor dela. Ela não se importou. Queria poder ficar apenas mais alguns instantes com o manequim. Tocar seu rosto frio. Olhar seus olhos brancos que pareciam prestes a se tornar reais.
— Vamos, Fernanda. Para de fazer carinho no manequim, vai derrubar ele.
Sua mãe a pegou pela mão, e ela se deixou afastar, relutante. Com medo de que a separação fosse eterna. Com medo de que ele em breve a esquecesse, como os amantes frios se esquecem de suas amadas com o nascer do sol.
Eu te amo, manequim.

* * * * *

Ela passou a ir à cidade quase todos os dias.
Sempre que sua mãe, ou seu pai, ou alguém, dizia que estava indo na cidade, ela conseguia uma forma de ir junto. E então fazia a pessoa ir com ela até aquela loja, para encontrar seu amado.
Às vezes, ele estava exposto na vitrine, e ela ficava do lado de fora, olhando para ele, admirando-o de uma forma que ninguém mais admirava. Outras vezes, ele ficava no interior da loja, e ela corria para dentro e segurava sua mão, tocava seu rosto, e tinha que se controlar imensamente para não abraça-lo.
Dias e dias se passaram assim.
Um dia, um dos dias em que ela estava em frente à vitrine olhando o manequim, uma garota parou ao seu lado.
— Você o ama muito, não é?
Fernanda olhou para a garota com desconfiança, mas acabou confessando:
— Sim.
— Você faria qualquer coisa por ele? Pra ficar com ele?
— Sim. Mas nada do que eu faça vai adiantar. - Fernanda suspirou - Ele é só um manequim.
— Mas você gostaria de ter ele só pra você?
— Claro!
— Então, hoje à tarde, sente-se no telhado da sua casa e espere até que a primeira estrela apareça no céu. Assim que ela aparecer, reze para ela pedindo para ficar com o manequim para sempre. Se fizer isso, ele estará na sua porta à meia-noite. Mas como consequência, você terá que ir com ele para um lugar muito distante, e nunca mais verá sua família, seus amigos ou essa terra.
Disse isso e se afastou, antes que Fernanda tivesse a chance de perguntar qualquer coisa.

* * * * *

Quando a ave-maria tocou, Fernanda subiu no telhado de sua casa e lá ficou, esperando a primeira estrela da noite. Era a temporada de sol e por isso as estrelas demoravam a se mostrar no céu. Mas finalmente, no horizonte, o pequeno ponto brilhante surgiu, ainda ofuscado pelos últimos raios do sol que se punha.
— Primeira estrela do céu - Fernanda rezou - por favor, atenda ao meu pedido. Traga para mim o manequim, para que nós fiquemos juntos para sempre. Eu o amo mais do que tudo, estrela. Permita que nós fiquemos juntos para sempre.
Naquela noite, ela se deitou mas não dormiu. Ficou olhando para o teto, sentindo o coração bater forte com uma mistura de medo e ansiedade. E se sua oração não fosse forte o bastante para trazer o manequim até ela? E se ele não a amasse como ela o amava? E que lugar era esse para aonde teriam que fugir? E se...
A primeira das doze badaladas soou, anunciando a meia-noite. Na mesma hora Fernanda se pôs de pé e foi correndo para a frente da casa. O sino ainda soava quando ela abriu a porta.
Em frente à porta, como se esperando por ela, estava o manequim.
Com lágrimas nos olhos, Fernanda correu até ele e o abraçou. Era a primeira vez que podia abraça-lo daquela forma, e apesar de seu corpo ser frio e rígido como um boneco sem alma, ela tinha certeza de que podia sentir uma força vital correndo por ele, correspondendo ao seu abraço.
— Manequim. - ela tocou no rosto dele - Eu te amo tanto, manequim.
E com isso, ela fechou os olhos e o beijou. Os lábios dele eram frios e imóveis em um momento, e quentes e macios no instante seguinte. Ela abriu os olhos, e viu diante de si o manequim se tornar um menino de verdade.
A brancura de gesso foi substituída por um tom levemente rosado, a textura plástica se tornou a mais macia das peles. Seus cabelos, que antes não passavam de um relevo sobre sua cabeça, tornaram-se soltos e dourados e macios. Seu rosto adquiriu expressões, e afinal seus olhos - os olhos que ela sempre jurara que correspondiam ao olhar dela - deixaram de ser apenas um vazio branco, e se tornaram olhos de verdade, de um azul profundo.
Como um bebê que acaba de chegar ao mundo, o manequim olhou ao redor com uma mistura de medo e fascínio. E então olhou para Fernanda, e um sorriso surgiu em seus lábios.
— Você é aquela que por tanto tempo me deu seu amor, e que agora me deu a vida. Obrigado por tudo o que fez por mim. Eu serei seu para sempre, e a amarei mais do que as estrelas amam ao céu.
— Eu também serei sua para sempre, porque te amo mais do que tudo no mundo.
Os dois se abraçaram, com a felicidade que apenas aqueles que já realizaram um sonho conhecem. Nessa hora, a garota misteriosa que Fernanda encontrara em frente à vitrine surgiu ao lado deles, dizendo:
— Vocês não têm mais tempo a perder. Se querem ficar juntos para sempre, devem fugir agora até a terra onde o sol nunca nasce, pois o feitiço que trouxe o manequim à vida só fará efeito enquanto for noite. Se os raios do sol o encontrarem, o feitiço se quebrará e nunca mais poderá ser refeito.
— Como fugiremos para a terra da noite eterna? - disse Fernanda - Somos apenas crianças, e não sabemos como chegar lá.
— Eu os levarei. Basta que digam que é esse o seu desejo, e tenham consciência de que nunca voltarão.
— Sim - Fernanda disse - eu juro.
— Eu também juro. - disse o manequim.
— Então me deem as mãos, e fechem seus olhos.
Fernanda e manequim se deram as mãos, e em seguida cada um pegou uma das mãos da garota. Eles fecharam os olhos, e sentiram como se mergulhassem em um lago profundo e muito antigo. Ao abrir novamente os olhos, viram diante de si uma cidade coberta de neve, iluminada apenas por luzes frias e pelas estrelas.
— Essa - disse a garota - é a cidade da noite eterna. Onde o sol nunca nasce, e onde poderão ficar juntos para sempre.
Ela soltou as mãos deles e desapareceu. Fernanda e manequim se abraçaram, e então seguiram juntos para os portões da cidade, de onde nunca mais saíram.

SOBRE A HISTÓRIA

A ideia para essa história veio de um fato que ocorreu de verdade com a minha irmã: quando ela tinha uns cinco anos, ela se apaixonou por um manequim (?). O nome da personagem é uma homenagem a uma das minhas leitoras mais assíduas (sua linda *-*).

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

[conto #057] No Fundo

NO FUNDO

Eu me lembro de quando eu fui feliz pela primeira vez.
Nós tínhamos nove anos e estávamos brincando atrás da escola. Devíamos estar em cinco ou seis crianças, e não deveríamos estar ali. Havia um bosque atrás da escola e no meio dele havia um lago, e era um local perigoso. Mas obviamente, se não fosse perigoso, não nos interessaria.
As outras crianças brincavam na beira do lago. Eu estava sentada em cima de uma pedra, olhando para a água. Me sentia muito triste.
Eu me sentia sempre triste. Profundamente triste.
Como se o simples fato de estar viva fosse um motivo para melancolia.
Eu não sei exatamente em que momento as crianças cansaram de brincar na margem e resolveram entrar na lagoa. Só sei que de repente ali estavam elas, tirando as roupas e se jogando na água verde-escura. Alguns respingos de água caíram sobre mim, e aos gritos elas me chamaram para entrar também.
Eu nunca tinha entrado na lagoa. Sequer sabia nadar. Achei que poderia morrer se entrasse ali. Seria interessante morrer.
Talvez, se eu morresse, não me sentiria mais tão triste.
Me pus de pé. Em passos frios fui andando em direção à margem.
As crianças nadavam no meio da lagoa. Lentamente, meus pés tocaram a água.
Estava fria. A pedra estava escorregadia. Mas não foi nisso que eu reparei. A única coisa em que eu reparei foi na sensação.
O que eu senti quando toquei a água foi como se um milhão de linhas estivessem se amarrando na minha alma e me puxando em direção à água. Essa é a única forma de explicar aquilo.
E conforme essas linhas foram me puxando para dentro da água, eu fui adentrando cada vez mais, até que o chão sumiu e eu afundei.
E eu percebi que aquilo, aquelas linhas na alma, eram o que as pessoas chamam de felicidade.
E eu entendi tudo.
Permaneci no fundo da lagoa, sentada em silêncio, por muito tempo. Não queria abandonar aquela sensação única. Não queria deixar de sentir as linhas.
Só subi quando eu soube que estava acabado.
Emergi bem no meio da lagoa. A água, verde-prateada, refletia o céu. Sobre ela, os corpos dos meus amigos boiavam, sem vida.
Pela primeira vez na minha vida, eu sorri.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse é o primeiro conto que eu publico depois de um hiato de mais de um mês sem escrever absolutamente nada que não fossem fanfics slash, então foi um pouco difícil de fazer e a narrativa ficou um pouco fraca. Mas ele surgiu do nada e do nada seguiu, em um estilo que se tornou muito característico meu nos últimos anos. Eu ia escrever muito mais coisa, mas quando cheguei nessa que acabou sendo a última linha, eu percebi que esse era o final, e qualquer coisa além dele faria o conto perder o tom.