sexta-feira, 26 de julho de 2013

[conto #051] Amor Líquido

AMOR LÍQUIDO

Ele era só mais um em meio a tantos outros. Olhavam para eles como se fossem todos iguais, incapazes de perceber as pequenas particularidades que os diferenciavam e os tornavam únicos. Cada um deles era único, era especial, e ninguém percebia.
Mas ele não se importava com eles. Com nenhum deles. A única que lhe importava ela ela.
Ela.
Ela chegara pouco depois dele. Estavam ali há muito tempo, os dois. Ela em frente a ele, sempre, a lhe provocar. Ele já decorara cada detalhe dela: seu corpo metálico, que brilhava de forma diferente dependendo da luz que entrava pela janela, e que assumia novos tons quando a lâmpada era trocada; as pequenas ondulações nas suas laterais, delicadas, suaves e bem definidas; os pequenos entalhes em relevo na frente. Tudo sobre ela era lindo e perfeito, e ele não cansava de olha-la, vê-la parada durante a maior parte do tempo, vê-la ser girada de um lado para o outro algumas vezes durante o dia.
Era a torneira mais bela que ele já vira.
Os outros azulejos tentavam dissuadi-lo daquele amor impossível. Em primeiro lugar, eles diziam, vocês são de naturezas diferentes: nunca um amor entre uma torneira e um azulejo dera certo. Além disso, ele ficava na parede oposta à dela, e eles jamais poderiam se aproximar. Aquilo só poderia acabar em lágrimas.
E ele sofria.
Durante os banhos, lágrimas caíam por ele quando a via ser tocada de forma tão displicente por mãos que não a amavam, que sequer percebiam sua existência. Durante o dia, assistia inconsolável enquanto ela conversava com os azulejos ao redor dela, que não a amavam, enquanto ele e seu amor eram ignorados. Ele queria tanto tê-la, que faria qualquer coisa para se aproximar dela.
Qualquer coisa.
Uma noite, ele foi acordado por uma luz estranha em cima dele. Quando olhou, viu um azulejo flutuando diante de si, e por um momento achou que estivesse tendo um sonho louco.
-- Não é um sonho. - o azulejo flutuante disse, sorrindo diante da perplexidade do outro - Nenhum dos outros acordará, e você não deve contar sobre esse encontro para ninguém. Eu vim porque escutei seu sofrimento, e quero te ajudar.
-- Você pode me ajudar?
-- Sim. Posso fazer você e sua amada ficarem juntos para sempre. Mas isso terá um preço.
-- O que quer que seja, eu pago.
-- O preço será sua vida.
O azulejo olhou para ele, perplexo.
-- Como assim?
-- Você poderá ficar com sua amada por algum tempo, e então morrerá e sua alma será minha. Se acha que sua vida vale mais do que um momento com aquela que você ama, então recuse. Mas se a ama tanto que morreria por ela, aceite. Muito simples.
Ele pensou um pouco. Já existia há uns bons dez anos, e amava a torneira por igual período. Suportaria mais incontáveis anos de sofrimento? E de que valia, afinal, uma vida sem aquela que amava? Se pudesse estar com ela, mesmo que por um curto período, mesmo que por apenas alguns minutos, tudo valeria a pena. Poderia morrer e entregar sua alma para quem quer que fosse aquele azulejo flutuante; sabia que morreria feliz.
-- Eu aceito.

* * * * *

Era início da manhã. Ele acordou, e a primeira coisa que viu foi a torneira, como em todas as manhãs. Mas havia algo estranho com ela.
Ao olhar bem, ele percebeu que ela parecia menor. Mais fina, talvez. E havia gotas de água em toda a sua superfície, o que era estranho pois o banheiro já estava seco há horas. Ficou pensando nisso durante algum tempo - ela podia estar doente, algum vazamento talvez - até que percebeu que ele mesmo estava molhado. Mas aquela água não vinha de fora, vinha dele. Como se estivesse derretendo. Como se estivesse se transformando em água. Mas isso, obviamente, seria impossível, do mesmo jeito que seria impossível um azulejo sair voando...
E então ele se lembrou. O azulejo flutuante.
Olhando novamente para a torneira, percebeu que definitivamente ela estava se transformando em água, pingando no chão. Ele próprio estava cada vez menor, escorria pela parede, até que todo ele se desfez e escorreu para ela, para a poça que ela se tornara. A abraçou com paixão e desespero, e sem esperar permissão se misturou a ela, finalmente tendo junto a si aquela presença tão amada.
Todos os anos de espera haviam valido a pena. Ela era dele, e ele a amava mais do que tudo no mundo. Mas a felicidade duraria pouco, e logo seria cobrado o preço pelo desejo concedido.
O azulejo flutuante surgiu diante deles. Os outros azulejos gritaram assustados, e a poça que antes era a torneira se encolheu. A poça que antes era o azulejo a abraçou, procurando protege-la e sentir seu amor por ainda mais algum tempo, antes que sua existência tivesse um fim. E então, obedecendo a uma ordem misteriosa, o chuveiro foi aberto.
Milhares de gotas de água caíram sobre eles, misturando-se a eles, afastando-os um do outro. Eles tentaram se agarrar um ao outro, se seguraram com todas as forças, mas a força da água que caía era muito maior, e afinal os separou. entre gritos de horror e agonia, eles se viram invadidos e misturados por aquela água maligna, perdendo sua própria consciência e se tornando parte de algo que não queriam ser, até que finalmente suas existências se esvaíram e eles escorreram pelo ralo no chão, junto de toda a água. E então o chuveiro foi desligado, e o azulejo flutuante desapareceu, com uma risada maligna.
O banheiro ficou completamente seco novamente, como se nada houvesse acontecido. Nas paredes, de um lado um azulejo faltando, do outro a ausência da torneira. Os azulejos murmuravam entre si, assustados; todos sabiam o que acontecera, e porquê acontecera, e aquela história seria passada de geração em geração por muitos anos.
O amor entre um azulejo e uma torneira era um amor proibido.


SOBRE A HISTÓRIA

Isso é o que acontece quando se tenta ter ideias para contos de madrugada.
A ideia para essa história surgiu em uma noite, enquanto eu tomava banho. Naquele dia, eu havia acordado às cinco e meia da manhã, feito uma prova muito difícil às sete, e passado literalmente o resto do dia, até quase meia-noite, fazendo um trabalho da faculdade com um amigo. Quando finalmente voltei para casa, em um estado de semi-consciência, comecei a pensar em ideias para contos e é obvio que nada de minimamente normal iria surgir.
Só por questão de curiosidade: quando eu tenho uma ideia mas não vou escrever no momento, eu faço uma pequena anotação para lembrar depois. Para esse conto, escrevi o seguinte: O azulejo de banheiro que se apaixona pela torneira em frente a ele e faz um pacto com o demônio para ficar com ela (eles viram água, escorrem pela parede e se unem no chão). No dia seguinte fiquei quase meia hora rindo depois que li isso. Mas como é o destino do escritor escrever mesmo as coisas mais bizarras, aí está o conto, para quem possa apreciar.

* * * * *

Essa é a semana de aniversário do blog, e em comemoração estou publicando um conto por dia durante toda a semana, de segunda a sexta. Este é o último conto da semana, espero ter atendido às expectativas (ou, pelo menos, não ter decepcionado muito). Obrigada a todos! =)

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