segunda-feira, 22 de julho de 2013

[conto #047] Passarinho

PASSARINHO

Eu tinha cinco anos quando a conheci. Ela era uma mulher jovem, vivia sozinha na floresta e todos a chamavam de bruxa.
Eu não tinha ninguém que me explicasse sobre a vida; ela me acolheu e passou a me ensinar sobre o mundo, esse lugar misterioso no qual eu chegara há pouco tempo. Eu ia todos os dias à floresta, fazer perguntas sobre tudo; perguntas que ela sempre respondia. Perguntas sobre o céu e a terra, a vida e a morte, a tristeza e a alegria.
Um dia, ela me deu um passarinho. Ele estava machucado e não podia voar; eu não iria cuidar dele ou cura-lo, apenas ficaria ao seu lado, lhe fazendo companhia, enquanto fosse necessário. Eu era uma criança solitária e ele era um passarinho machucado; seria bom que ficássemos juntos um do outro.
-- Você pode ficar com ele – ela me disse, quando o entregou para mim – e pode brincar com ele, e ficar ao seu lado e ouvir seu canto, e apreciar suas cores; mas não pode querer ele só para você. Porque ele irá embora quando desejar, e se você ama-lo, irá sofrer. Por isso eu o entrego livre, e não em uma gaiola; porque ele estará ao seu lado, mas não lhe pertencerá.
Eu aceitei, e jurei que não iria querer ele para mim, nem o amaria a ponto de sofrer quando ele partisse. Eu já tivera outros pássaros antes, e todos eles um dia iam embora, e eu me acostumara com isso. Tinha certeza de que não me importaria quando o passarinho resolvesse partir.
Mas havia algo especial naquele passarinho. Eu podia passar horas e horas com ele, apenas ouvindo ele cantar. Ficávamos horas e horas na floresta, até que a noite caísse, e estar com ele fazia com que eu me sentisse simplesmente bem. Não havia mais problemas, nem passado e nem futuro. Eu só estava ali, com ele, o ouvindo cantar.
Ele não era, na verdade, um passarinho especial, nem se destacava no meio dos outros. Não era o mais bonito, não era o que tinha a melhor voz, o melhor canto ou as cores mais bonitas. Mas seu canto parecia se encaixar perfeitamente comigo, falar diretamente a mim. Ele conseguia me deixar feliz, não por ter algo acima dos outros, mas por ter algo em comum comigo. Ele era especial apenas para mim, e era isso o que importava.
Um dia, eu cheguei na floresta e não o encontrei. Ele não estava em lugar nenhum. O procurei durante muito tempo, até que o avistei, voando no céu. Ele se despediu brevemente de mim, e partiu; eu me sentei no chão e fiquei assistindo ele se afastar, até que sumisse no horizonte.
Continuei sentada ali, sozinha, por muito tempo; até que a bruxa da floresta se aproximou de mim e se sentou ao meu lado.
-- Ele se foi. – eu disse.
-- Eu sei.
-- Se foi assim, de repente. Ontem parecia que ele continuaria cantando para mim enquanto houvesse sol no céu, e hoje ele simplesmente se foi.
-- Você sabia que isso aconteceria.
-- Eu sei.
Ficamos em silêncio por algum tempo; eu continuava olhando o horizonte. Talvez esperando que ele se arrependesse e voltasse. Talvez esperando que outro pássaro surgisse ali para tomar o lugar dele, de forma que eu nem percebesse sua ausência.
-- Você está triste?
-- Sim.
-- Então por que não chora?
-- Talvez porque minha tristeza não seja tão grande quanto eu achei que seria. Ou talvez porque ela é aquele tipo de tristeza que ao invés de lágrimas, cria um vazio dentro de você. Um vazio tão grande que parece que nem o universo inteiro é capaz de preencher.
-- Você não sabe o que você está sentindo agora?
-- Não.
Novamente o silêncio; e então eu comecei a falar, com a mesma necessidade que alguém quase afogado tem de respirar:
-- Eu fiz tudo errado. Tudo errado. Você disse para eu não querer ele pra mim, e eu quis. Eu comecei a tratar ele como se ele fosse meu, e isso fez ele ir embora. Você disse que eu não podia amar ele, e eu amei. Tudo o que eu não devia fazer, eu fiz, e agora estou triste como não devia estar, como se nunca tivesse passado por isso antes. Já tive tantos passarinhos, tantos já foram embora, porque eu tenho sempre que ficar triste com isso? Eu devia estar feliz porque ele escolheu o que era melhor para ele, deveria querer o que é melhor para ele, mas eu estou triste porque o queria para mim e agora ele se foi para sempre. E mesmo ele tendo partido, eu desejo que ele volte, eu fico esperando que ele volte, mesmo sabendo que ele não vai voltar.
-- Você não fez nada errado. Você não tem que ser a única pessoa no mundo que controla totalmente o que sente. Não tem que ser a pessoa mais forte do mundo.
-- Tenho sim. Se eu não for, quem vai ser? Não tenho ninguém para cuidar de mim. Então eu tenho que cuidar de mim mesma.
-- Mas fingir que não está sofrendo não é o mesmo que não sofrer.
-- Eu sei. Mas pelo menos não faço as outras pessoas sofrerem por minha causa.
-- Você acha que ele foi embora por sua causa?
-- Acho. Porque eu fiz tudo errado. Eu podia ter feito tudo diferente. Queria poder viver mil vezes, para poder encontrar a forma certa de fazer com que ele ficasse comigo por mais tempo.
-- E por que você queria ele com você mais tempo?
-- Porque ele era um passarinho especial. Eu queria ouvir ele cantar mais um pouquinho.
-- Você vai ouvir o canto dele outras vezes. Ele vive aqui na floresta, vocês sempre estarão juntos.
-- Eu sei. Mas agora, o canto dele não será mais para mim, e eu não sentirei que tenho algo bom comigo. Ele não pertencerá a ninguém, assim como eu não pertenço a ninguém, e eu não sentirei que ele é especial apenas por estar comigo.
Conversar com ela estava me acalmando, mas o vazio dentro de mim ainda existia. Me levantei e comecei a andar pela floresta, com ela ao meu lado. Em breve precisaria voltar para casa.
-- Por que nada dura para sempre? – perguntei, num tom triste, melancólico.
-- Porque é isso que faz a gente apreciar as coisas. Saber que elas vão acabar.
-- Tudo o que eu amo vai embora. Todas as coisas boas vão embora. Sempre.
-- Mas todas as coisas ruins também se vão.
-- Mas as coisas ruins deixam marcas para a vida toda.
-- E as coisas boas também.
Chegamos ao fim da floresta. Eu iria para casa agora.
-- Eu sei que você está sofrendo agora, porque o passarinho que você mais queria se foi. Mas com o tempo a dor diminui, e outros passarinhos virão. Com outras cores que você também apreciará, e com outros cantos que se tornarão especiais.
-- Eu sei. – olhei para o céu, ainda desejando ver meu passarinho – E poderei ver ele voando, sempre.
Segui para casa, olhando sempre para o céu, mas sem conseguir ver as cores que eu tanto queria ver.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse é um conto para a semana de aniversário do blog. Será publicado um conto por dia, de segunda até sexta.

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