segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

[conto #021] Menina dos Olhos de Ouro

MENINA DOS OLHOS DE OURO

No dia cinco de abril de mil novecentos e setenta e sete, nasceu uma menina preta com olhos de ouro. Ela tinha a pele tão preta como a noite mais escura, e os olhos eram de um ouro tão puro que, quando a luz do sol batia neles, o brilho cegava as pessoas ao redor.
Quando a menina abriu os olhos pela primeira vez, ainda bebê, e a luz do sol bateu neles, a mãe da menina ficou cega. O pai, com raiva da filha por ter cegado sua esposa, resolveu abandonar aquela criança. E, em uma noite tão escura quanto a pele dela, ele a colocou em uma cesta e a jogou no rio.
Durante toda a noite a menina ficou no rio, sendo levada pelas águas. Ela passou ao lado de cidades, e havia pessoas na beira do rio, mas ninguém a viu, pois ela dormia e não se via seus olhos dourados; como sua pele era muito preta, quem olhasse só veria uma cesta vazia na escuridão da noite.
Quando amanheceu e a menina acordou, mostrando seus olhos dourados, o rio já a levara para longe, para a floresta, onde não haviam pessoas; apesar de ser um bebê, a menina não chorou nem de medo, nem de fome. E o sol, encantado pela beleza dos seus olhos, fez cair a chuva para que ela pudesse beber e não sentisse sede. Os peixes do rio também se encantaram por aquela menina, de pele tão preta e olhos tão dourados, e lhes deram de comer as plantas do fundo do rio, para que ela não sentisse fome. E ficaram todos cuidando dela, até que a noite chegou e ela dormiu.
Durante muitos e muitos dias, a menina dos olhos de ouro continuou sendo levada pelo rio, bebendo a água da chuva e comendo as plantas do fundo do rio. E em nenhum dia ela chorou, e em nenhum dia alguém a viu. Porque o rio só a levava pelas cidades durante a noite, quando ninguém a via por causa da escuridão de sua pele e a ausência do brilho de seus olhos.
Conforme os dias passavam, a menina foi crescendo. Cresceu tanto que deixou de ser um bebê e se tornou uma garotinha, e o rio se achou pequeno para ela. Então, ele a levou até o mar.
O mar era grande e muito azul, diferente das águas verdes e calmas do rio. E não a levava sempre para a frente, e não havia frente; ela ia de um lado para o outro, às vezes andava dias em uma direção, apenas para dar meia volta e chegar novamente ao lugar de onde viera.
Também o mar amava a menina, pelo brilho dos seus olhos, e disse a ela para voltar para a terra, onde viviam outras pessoas como ela.
"Não posso voltar", disse a menina, "pois quando abro os olhos e vejo o sol, meus olhos brilham tanto que cegam todos à minha volta. Ceguei minha mãe, e meu pai me jogou ao rio por causa disso; queria tanto ter olhos como os das pessoas normais".
Mas o mar não podia tirar o ouro dos olhos da menina. Ela ficou muito triste, mas nem nessa hora ela chorou. E não chorou quando choveu, nem quando sentiu frio, nem quando sentiu calor. Apenas se encolhia em sua cestinha, e lá ficava, esperando o tempo melhorar.
Muitos e muitos dias se passavam, e a cada dia, mais preta a pele dela ficava, e mais ouro havia em seus olhos. E um dia, enquanto a menina dormia na noite, a cestinha bateu em um barquinho que por ali andava.
A menina acordou, assustada, pois nunca vira um barco. E dentro do barco havia um homem, e esse homem se assustou, pois só podia ver os olhos dourados da menina.
"Quem é você, olhos dourados?", disse o homem. "Onde está seu corpo?"
"Não sou apenas olhos", disse a menina, "sou uma menina. Mas minha pele é tão preta que você não pode ver. Mas posso tocá-lo".
Ela tocou no homem, e só então ele acreditou que ela tinha um corpo.
"Quem você é", ele disse, "e por que está sozinha na noite do mar?"
"Não tenho nome. Meu pai me jogou ao rio, pois o brilho dos meus olhos cegou minha mãe, e o rio me trouxe ao mar para que eu pudesse crescer".
"E por que seus olhos brilham tanto?"
"Porque são feitos de ouro".
A lua saiu de trás das nuvens, e ele pôde ver a menina sem que o brilho dos seus olhos o cegasse. E ele se apaixonou por aquela menina tão preta e com olhos tão dourados.
"Oh, menina, case-se comigo e me deixe ver o ouro dos seus olhos todos os dias".
"Por que quer se casar comigo?"
"Porque te amo".
A menina não sabia o que era amor, mas aceitou se casar com o homem. Deixou sua cestinha e subiu no barco, e o mar levou a cesta vazia embora para longe. Eles se casaram, e ele fez uma aliança com o sal da água do mar, e colocou no dedo dela.
Mas o sol começou a aparecer no horizonte. A menina fechou os olhos, temendo que o brilho deles cegasse também seu marido. Ele segurou suas mãos e pediu para que ela os abrisse, para que ele pudesse ver seus olhos brilhando durante o dia.
"Não posso abrir meus olhos, pois o brilho deles o cegará".
"Intenso é o brilho dos seus olhos, e intenso é o brilho do sol; mas meu amor é maior que tudo isso, e a luz não me cegará".
Essas palavras a convenceram, e ela abriu os olhos. Mas apesar de o amor do homem ser muito grande, ele não era maior do que o brilho dos olhos da menina, e a luz queimou seus olhos. Ele gritou de dor, e caiu no chão do barco.
A menina de olhos de ouro se ajoelhou e o segurou, tentando ajudá-lo, mas não havia nada que pudesse fazer. A dor do homem era tão grande, e tão grande sua tristeza por não poder mais ver, que ele acabou morrendo.
A menina não sabia o que era a morte. O homem já não respirava e seu coração já não batia, mas ela ficou chamando por ele dias e dias, esperando que ele respondesse. E com o passar dos dias os pássaros começaram a pousar no barco, e comeram o corpo do homem, até que nada restasse e a menina ficasse novamente sozinha.
Ela se sentiu muito triste, mesmo não sabendo o que era a tristeza. E sua dor foi aumentando e aumentando, e uma lágrima dourada caiu de seus olhos para o mar, pela primeira vez desde que ela nascera. E várias outras lágrimas também caíram, e ela chorou pela primeira vez.
Conforme caíam, as lágrimas iam levando para o mar o ouro dos olhos da menina, até que todo ele se foi; quando ela abriu os olhos, eles não eram mais dourados, e sim azuis como a água. E o mar agora estava coberto de ouro, suas águas todas douradas e brilhantes. E todas as pessoas do mundo viram o mar dourado, e o brilho dele cegou seus olhos; e todas as pessoas do mundo ficaram cegas. Apenas a menina continuou a ver.
O mar dourado levou a menina até a areia da praia, e lá ela deixou o barco e seguiu pelas cidades. E por onde passou, todas as pessoas estavam cegas, e ninguém a via. E isso a deixou triste, e ela foi andando de volta para o rio de onde viera, e se sentou na sua margem.
"Por que você está triste?", disse o rio.
"Porque sempre quis poder ver o mundo, e ver as outras pessoas, e agora que posso, ninguém pode me ver. E todas as pessoas estão cegas e choram e sei que a culpa de tudo o que há de ruim no mundo é minha".
"Você não é culpada; a culpa é delas, por não poderem ver o brilho de algo puro sem ficarem cegas. Entre em minhas águas, e levarei sua tristeza embora".
A menina entrou no rio, e ele lavou sua tristeza para longe. E quando ela estava de novo leve e sem culpas, os pássaros a seguraram pelos ombros e a levaram para o céu, até o sol, em um lugar onde tudo era dourado e de onde ela podia ver os homens cegos na Terra. E lá ela viveu pelo resto dos seus dias.


SOBRE A HISTÓRIA

Este conto foi escrito tendo como base a palavra "amarelo" (por uma associação óbvia, de "amarelo" surgiu "ouro"). Para mim, é um lindo conto de fadas, no estilo que eu mais gosto: com mensagens subliminares que dizem muita coisa, mas que jamais serão entendidas por uma criança pequena. Adoro escrever contos infantis pela enorme possibilidade que eles oferecem, e neste eu explorei todas elas ao máximo. Deixo interpretações e teorias sobre seu significado por conta de quem o ler.

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