sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

[conto #019] A Menina da Água

A MENINA DA ÁGUA

Era a primeira vez que eu usava a banheira do apartamento. Havia me mudado já há um mês, mas não tinha tido tempo – nem disposição – para encher a grande banheira e preparar um banho decente. Mas havia prometido a mim mesmo que faria isso no fim de semana; e lá estava eu, sentado, coberto de espuma, apreciando a sensação da água quente e limpa.
Quando abri os olhos, já não estava sozinho. À minha frente, também coberta de espuma, estava uma garotinha, pequena criatura nua de cabelos molhados e grandes olhos assustados.
Não me assustei. Apenas fiquei parado, sem entender. Ela olhava para mim com curiosidade.
-- Quem é você?
Ela não me respondeu. Começou a mexer na espuma, brincando. Eu não sabia se devia levantar ou permanecer ali.
-- Como entrou aqui?
Nenhuma resposta. Peguei uma toalha, me cobri e saí da banheira. Ela, por sua vez, ficou olhando um tempo para mim, e então mergulhou na água. E não voltou mais.
Mexi na água, procurando-a, e não a encontrei. Esvaziei a banheira: não havia nada ali, nem ninguém. Apenas o fundo branco e escorregadio.
Aturdido, me enxuguei e me vesti. Não estaria disposto a usar a banheira novamente nos próximos dias.

* * * * *

Passou-se quase uma semana, até que eu resolvesse usar novamente a banheira. Não tinha a menor idéia do que fora aquilo que acontecera, mas aos poucos fui me convencendo de que a menina só podia ser uma alucinação. Devia ter sido um dia estressante, eu estava mais cansado do que imaginara; provavelmente cochilara na banheira, e confundira sonho e realidade.
Mais uma vez, enchi a banheira e preparei meu banho. Quando estava prestes a entrar, o telefone tocou. Fui atender, e quando voltei, antes mesmo de entrar na banheira, lá estava ela, a mesma garotinha de antes. Dessa vez, estava lavando os cabelos, esfregando-os até que estivessem cheios de espuma. Olhou para mim quando entrei, e, dessa vez, cheguei o mais próximo que eu chegaria de sentir medo. Como se percebesse isso, ela novamente mergulhou na água, e novamente ao procurá-la, ela havia desaparecido.

* * * * *

Fiquei bastante tempo refletindo. Fosse o que fosse aquilo - se era realmente uma criança ou se era uma aparição - não era nada que eu conhecesse. Ela não se parecia com ninguém que eu conhecia, ou que tivesse conhecido. Se fosse um fantasma, era o mais gracioso que poderia existir.
Finalmente, a curiosidade venceu o medo. Eu tinha que descobrir quem era aquela menina, ou o que ela era, ou o que significava. Por isso, no fim de semana, refiz os passos que havia feito nas duas vezes anteriores: enchi a banheira, preparei o banho, e fiquei ali, ao lado, esperando.
Esperei bastante tempo, e ela não apareceu. Depois de quase quarenta minutos, acabei desistindo. Ela nunca demorava tanto. Me levantei e saí do banheiro, me perguntando se não estaria sofrendo alucinações.
Então, mal chegara na sala, uma idéia me ocorreu. Nas duas vezes anteriores, eu não a vira chegar. Talvez... Fui quase correndo de volta para o banheiro. E de fato, ali estava ela, menininha de cabelos escuros e olhos grandes e negros, soprando a espuma de suas mãozinhas brancas.
Quando ela me viu, eu não me aproximei. Sempre que fizera algum gesto na direção dela ela se fora, por isso fiquei apenas parado, olhando. Tentava ver algo, algum sinal, que pudesse me dar uma idéia do que era aquilo; mas ela, por sua vez, parecia querer o mesmo de mim, e me olhava com olhos curiosos.
Por vários minutos, nenhum dos dois se mexeu: nós dois ficamos apenas nos olhando. Então, com muito cuidado, me aproximei, tentando mostrar que não estava com medo e que não queria machucá-la. E disse:
-- Oi.
Ela me olhou desconfiada, mas não sumiu. Me ajoelhei no chão e encostei na banheira.
-- Qual o seu nome?
Não que eu esperasse que ela fosse responder. E de fato ela não o fez. Mas também não fugiu. Voltou a se lavar, passando a espuma pelos cabelos, sem tirar os olhos de mim. Fiquei o resto do tempo em silêncio, olhando para ela. Teria que conquistar sua confiança.
Quando se cansou de se lavar e brincar com a espuma, ela me olhou uma última vez, e novamente mergulhou na água. Não me dei ao trabalho de procurá-la; sabia que ela não estava mais ali.

* * * * *

Aos poucos, fui me aproximando dela. Estabelecemos uma rotina silenciosa: eu enchia a banheira, ia para a sala, e quando voltava, segundos depois, lá estava ela. Então eu me ajoelhava ao seu lado, e ficava assistindo seu banho, até que ela se cansasse e mergulhasse para alguma outra dimensão.
Depois de quase um mês desse ritual, ela começou a interagir comigo. No começo, foi bem tímida: ficava soprando bolhas de sabão para mim, depois me jogando água. Mas, quando eu tentava encostar nela, ela mergulhava e sumia.
Um dia, enchi a banheira, fui para a sala e o telefone tocou. Fui atender, e demorei bastante tempo. Quando desliguei e me virei para a porta, a menina estava parada na minha frente, a poucos metros de mim, nua e molhada, pingando água pela casa toda. Levei um susto - nunca imaginara que ela pudesse ter uma existência fora da banheira - e quase dei um grito. Ela se assustou também, saiu correndo para o banheiro. Fui atrás, e ainda vi quando ela pulou dentro da banheira e sumiu.
Demorou quase uma semana para que ela aparecesse de novo. E tive que recomeçar todo o ritual para reconquistar sua confiança.

* * * * *

As coisas entre nós finalmente haviam voltado ao que eram antes. Ela soprava espuma para mim, me molhava, e parecia se divertir com isso - embora nunca sorrisse, e sua expressão sempre parecesse uma mistura de assustada com curiosa. Fiquei feliz por ela não ter ido embora de vez.
Resolvi fazer o mesmo que fizera da outra vez: preparei a banheira, e então fui para a sala e fiz um telefonema. Fiquei bastante tempo conversando, e a toda hora olhava para a porta. Vi quando ela apareceu na porta do banheiro, mas ela parou quando viu que eu estava olhando. Me virei de costas, fingindo que não a tinha visto, e quando olhei de novo, lá estava ela, na porta da sala. Me virei para ela, mas continuei falando no telefone. Ela ficou parada, me olhando, parecendo intrigada.
Quando finalmente desliguei o telefone, ela deu um passinho para trás, pronta para fugir. Ao invés de ir até ela, lhe dei as costas e fui para a cozinha. Não demorou nem cinco segundos para que ela aparecesse atrás de mim. Como se fosse a coisa mais natural do mundo, peguei um biscoito e ofereci para ela, sem me aproximar nem dizer nada. Ela ficou parada, olhando, e lentamente, muito desconfiada, se aproximou e pegou o biscoito. Afastou-se imediatamente, indo de novo para a porta da cozinha, e ficou olhando desconfiada de mim para o biscoito, do biscoito para mim. Eu peguei outro biscoito e mordi; ela ficou na dúvida por alguns instantes, mas acabou mordendo o dela também. Comeu o biscoito todo, mas sem tirar os olhos de mim nem por um segundo.
Logo, estabelecemos uma nova rotina: eu enchia a banheira, ia para a cozinha e começava a fazer barulho com as panelas, para que ela soubesse onde eu estava. Logo, ela aparecia na porta. No início ficava apenas parada, olhando para tudo com curiosidade, mas depois passou a andar pela cozinha, mexer nas coisas. Arrisquei tentar conversar com ela: ela claramente me entendia, mas nunca falava. Pedia para ela pegar algo para mim e ela pegava, às vezes eu fazia um bolo e ela ficava assistindo, até me ajudando; depois comíamos juntos, até que, atendendo a algum chamado que só ela ouvia, ia correndo para o banheiro e mergulhava na banheira.
Tive a idéia de não esvaziar a banheira. Dessa forma, o portal ou o que quer que fosse ficaria sempre aberto, e ela poderia vir quando quisesse.
Deu certo. Agora, ela não aparecia só na hora do banho. Às vezes eu estava vendo tv na sala, e ela vinha e se sentava ao meu lado no sofá, assistindo também. Ou eu estava fazendo o almoço, e ela aparecia, ficava mexendo nas coisas. Algumas vezes, quando eu chegava do trabalho, encontrava ela andando pela casa, ou via as marcas de seus pezinhos e sabia que ela estivera me procurando. Eu gostava de sua companhia; o único inconveniente era que a casa estava sempre molhada.
Eu nunca mais usara a banheira para tomar banho. Dizia para mim mesmo que era porque não queria que ela me visse e resolvesse tomar banho comigo, mas a verdade era que tinha medo de acabar caindo pela mesma porta pela qual ela entrava, e me afogando em um mundo de água e espuma.
Ficava tentando imaginar como seria o mundo em que ela vivia. Perguntava para ela, mas ela jamais respondia; talvez nem pudesse falar. Eu fazia desenhos, mostrava para ela, mas ela os olhava com total indiferença. Onde quer que ela vivesse, não devia se parecer com nada que eu pudesse imaginar.
Um dia, quando eu estava indo dormir, ela apareceu no meu quarto e se deitou ao meu lado na cama. Fiquei um pouco incomodado a princípio, mas não fiz nada para impedí-la. Encostei de leve nela, com certa curiosidade: ela era gelada, e sua pele tinha uma textura estranha, provavelmente pela vida inteira debaixo d'água. Não parecia uma coisa viva, e achei melhor não tocá-la. Ainda tentei mexer em seus cabelos - agora ela não se importava mais - mas era ainda mais incômodo: eles eram escorregadios e pegajosos, uma textura que me lembrava algas. Acabei dormindo, com ela olhando para mim.
Quando acordei, de madrugada, levei um susto por ela estar ainda ao meu lado. Acendi a luz: ela estava de olhos abertos, mas não se movia. Temendo o pior - não sabia se ela podia passar tanto tempo fora da água - toquei nela. Gelada, os olhos imóveis. Desesperado, pois não sabia o que faria com um cadáver de algo não completamente humano, a sacodi. Ela despertou e se levantou, assustada, indo correndo para o banheiro e mergulhando na banheira. Demorei algum tempo para entender o que havia acontecido, até que uma luz se fez na minha mente: ela estava dormindo. De olhos abertos. Ela não tinha pálpebras. Tinha algo parecido com pálpebras, mas eu nunca a vira piscando.
Aquilo era muito perturbador, e eu esperava que ela não tentasse dormir comigo novamente.

* * * * *

Mas, algumas noites depois, ela apareceu no meu quarto novamente. Eu quase a expulsei, mas então pensei que, do mesmo jeito que o toque dela me dava sensações ruins, a minha presença, no início, também assustara ela. Me controlei e permiti que ela ficasse.
Depois de algumas noites, eu já estava praticamente acostumado com a presença dela. Podia até tocá-la sem sentir aquele arrepio desagradável que sentia antes. Às vezes, no meio da noite, ela acordava e ia embora, e no dia seguinte tudo o que eu encontrava ao meu lado era uma mancha de água no lençol. Mas muitas vezes ela ficava, e, enquanto eu ia escovar os dentes, ela se arrastava sonolenta até a banheira, onde se deixava cair para despertar em algum outro mundo.
Não era em todas as noites que ela vinha, claro. E nem todos os dias. Às vezes, ficava mais de uma semana sem aparecer. E às vezes, quando havia visitas em casa, eu via ela espiando pela porta do banheiro, mas logo sumia e não aparecia até que os estranhos fossem embora.
Ficamos naquilo por quase um ano. Eu me afeiçoara completamente a ela, e sentia sua falta quando ela não aparecia. Dava presentes a ela, comidas, brinquedos que ela não sabia usar. E ela corria pela casa toda, mexendo em tudo, molhando tudo, fazendo uma adorável bagunça.
Um dia, eu estava na sala, vendo tv, e ela estava ao meu lado, brincando com uma colher. De repente, ouvi um barulho, vindo do banheiro. Não dei muita importância, mas então ouvi outro barulho, o som de algo se arrastando, e uma espécie de respiração ofegante. A menina se levantou depressa, parecendo assustada. Me levantei também, e quando olhei para o corredor, vi a coisa mais horrível que jamais imaginara ver: um ser apenas vagamente humano, muito alto - devia ter quase dois metros e meio - e muito magro, a pele branca e cadavérica grudada nos ossos, algo parecido com cabelos caindo na altura dos ombros. A coisa era um homem, e estava nu. Vinha se arrastando pelo corredor, a respiração ofegante, os olhos completamente negros e sem pálpebras me olhando de forma ameaçadora. A garotinha entrou em pânico, eu tentei colocá-la atrás de mim, para protegê-la; mas ela saiu dos meus braços e correu até o ser ameaçador. Eu ia atrás, até que entendi: aquilo devia ser o pai.
De fato, ela pegou na mão dele, o puxando para a banheira, e ele a olhou de uma forma que deixava claro que eram conhecidos e que não a queria mal. Mas então se voltou para mim, e veio se arrastando de forma ameaçadora. Era bastante claro que ele estava furioso comigo, e eu não estava disposto a descobrir o que era capaz de fazer. Fui correndo para a cozinha, onde peguei a vassoura, e quando ele se aproximou eu ameacei atacá-lo também. Ele parou, olhando para a vassoura, tentando descobrir se aquilo era ou não perigoso. Então fez um último gesto na minha direção, pegando um vaso de flores que estava na estante e o atirando aos meus pés - devia querer deixar claro que suas intenções não eram amistosas - e voltou para o banheiro, levando consigo a garotinha. Antes de entrar, ela fez um gesto de "tchau" - algo que eu a ensinara - e eu entendi, pela forma que ela me olhava, que não nos veríamos de novo. Espiei pela porta do banheiro, e vi quando ela entrou na banheira, e quando a coisa entrou logo atrás. Corri e esvaziei a banheira: não queria que aquilo voltasse. Fiquei sentado, tremendo, pensando em como uma coisa tão fofa como a minha garotinha poderia se tranformar em algo tão monstruoso quando crescesse.

* * * * *

Mais de duas semanas se passaram, e eu não enchera novamente a banheira. Mas sentia tanta falta da menininha. Então, um dia, enchi a banheira e fiquei esperando - já fazia bastante tempo que ela deixava eu ver ela chegando.
Depois de quase quinze minutos, vi o movimento na água, que indicava a chegada dela. Mas, ao invés dos cabelos negros e da carinha curiosa, o que apareceu foi aquela coisa, os cabelos parecendo algas negras, a pele uma coisa morta, os olhos totalmente negros, sem íris, ameaçadores. Dei um grito, mas antes que aquilo saísse da banheira, eu peguei a primeira coisa que alcancei - um tubo de desodorante - e joguei um jato em cima dele. Assustado, ele se debateu e mergulhou na banheira. Eu a esvaziei o mais depressa possível, e nunca mais voltei a enchê-la.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse é o primeiro conto publicado aqui que foi inteiramente escrito com base em uma palavra. Infelizmente, não me lembro quem disse a palavra, mas seja quem for, apresento meus agradecimentos aqui. A palavra em questão foi "água", e a partir dela desenvolvi toda a história do conto. Talvez tenha havido uma levíssima inspiração no filme "A Dama na Água". Ao escrever sobre a garotinha na banheira, me baseei na minha prima Jady quando era bem pequena (ela era uma coisinha muito fofa), e para escrever sobre o ser monstruoso que aparece depois, o que me veio à cabeça foi algo parecido com aquele monstro do filme "O Labirinto do Fauno" que tinha os olhos nas mãos.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

[poesia #011] Sem Título I

Poema feito por mim em 05 de março de 2007. Originalmente, este poema não possui um título.

Crianças morrendo de fome rasgam seus corpos escuros
E a febre dá força aos ossos ocos
As veias secas visíveis na pele torrada
Servem apenas para lembrar ao mundo a morte que não houve
As crianças que secam sob o sol do deserto e sorriem
São o espetáculo que leva o mundo a chorar
E se vão
Jogar as migalhas diminui a culpa
Talvez a morte seja menos sofrida
Mas já não há dor
As mulheres morrem de fome
E as meninas estão doentes
Velhas de vinte anos arrastam seus ossos escuros
Para as valas quentes no meio do inferno
Aqui começastes, e aqui
Terminarás
Morra devagar
Para que todos tenham pena
E tempo de assistir
E, quando seu corpo começar a secar,
Você ainda vai ver
Mas ninguém escutará seu coração
E você não terá voz para gritar
As pessoas que sentem pena
Não sabem que, à noite,
Você chama por sua mãe
Mas você é forte, muito, muito, muito forte
E eles são fortes
E a morte é apenas mais uma
E não há mais medo de nada
Porque as crianças não sabem o que é ter medo
E as crianças gostam do escuro
E sabem matar
Elas esperam pela morte
Como quem espera o último trem
Que leva à velha cidade natal...

terça-feira, 6 de outubro de 2009

[conto #018] A Luta

A LUTA

Seria aquela a luta do ano. A sua luta. A batalha que definiria sua vida.
Sozinho no quarto, ele ensaiava, diante do espelho. Praticava contra si mesmo os golpes impiedosos que daria no outro. Repetia para seu reflexo as palavras de agradecimento ao público. Sobre um pódio imaginário, agradecia aos aplausos de uma platéia invisível.
Chegou o dia, afinal, do grande combate. O ringue o esperava, palco para seu glorioso espetáculo. A platéia gritava, em êxtase. Ele adentrou o campo de batalha e preparou-se para sua glória.
O outro entrou também. Suando frio. Sabia que não tinha chances. Sorriu com pena de seu pobre adversário, cuja derrota estava decidida muito antes de a luta ter começado.
Soa o sinal para o começo. Os dois em posição, se olhando. Ele, com um sorriso, embrigado pelo cheiro da vitória. O outro, com uma triste centelha de esperança em seu olhar.
Antes que haja o primeiro golpe, ele sente o golpe em seu peito, e desaba. O ar lhe falta. Tudo escurece.
Sofrera uma parada cardíaca. Estava morto antes de chegar ao hospital. Agradecendo aos fantasmagóricos aplausos de algum outro mundo.


SOBRE A HISTÓRIA

Mais um conto baseado nos contos do livro Contos de Amor Rasgado, de Marina Colasanti. Adoro escrever contos fantásticos curtos, principalmente com narrações como essa, que dão um ar meio surreal ao conto - mesmo este não tendo nenhum surrealismo propriamente dito. Tive a inspiração para escrever esse conto enquanto assistia a um filme sobre lutadores de boxe, absolutamente desinteressante.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

[conto #017] O Cachorro

O CACHORRO

Ela parada, encostada na marquise entre duas lojas. As pessoas que passam, em todos os sentidos, de todas as formas. No céu apenas céu, azul-claro como os olhos de um príncipe encantado imaginário. E então ela o vê.
O cachorro está andando do outro lado da rua. É magro e marrom-claro, e não anda realmente, mais se arrasta pela calçada, rente à porta das lojas, tentando não ser pisado acidentalmente – ou propositalmente; quem vai saber a intenção de um ser humano? Apenas está ali, e existe; e é visto pela garota do outro lado da rua.
Não se encaram, menina e cachorro; esta tem consciência daquele, mas aquele é indiferente à ela. Que importa uma menina para um cachorro? Ela não lhe dará comida, nem abrigo. Mas o cachorro prende os olhos da garota, animal dominando gente. Ela quer ver, que saber aonde vai um cachorro sem dono, um dos grandes mistérios da cidade.
Cachorro se afasta pela rua, menina vai atrás, cada qual em sua margem do grande rio onde navegam os automóveis. Ele anda, parecendo ter um destino; mas pára em frente à loja de discos – ouvindo música? - e ali se deixa ficar, mexendo no lixo da calçada, andando em pequenos circulos, assistindo ao incongruente movimento de pessoas para dentro e para fora, de um lado para o outro, em todas as direções.
No seu lado da rua, a menina senta na frente de uma loja fechada. O chão está sujo, mas se o cachorro, que é só um cachorro, não se importa, por que iria ela se importar?
Passa o tempo e as lojas fecham, e o sol se vai; ficam ali apenas os dois, menina de um lado, cachorro do outro. A apenas poucos metros de onde ela o encontrara, a curtos passos de distância de sua casa. Seria aquela a casa do cachorro? Mas se não tinha dono, se não tinha teto – se estava livre, se assim nascera – por que se prender a um só lugar? Por que não seguir andando indefinidamente, ultrapassar o limite da cidade, de todas as cidades, chegar até onde nenhum ser humano chegou – o ser humano, esse ser escravo e limitado. Ele, que era livre, restringia seu mundo a uma calçada e alguns passos, a uma loja fechada de discos. A menina voltou para casa, decepcionada.
Já tarde da noite, menina em sua casa, de banho tomado, camisola rosa, cabelos penteados – olha pela janela, e lá está ele, o cachorro, em frente à loja de discos. Talvez dormindo, talvez apenas deitado, com a resignação dos que esperam a morte desde que nasceram. Pequeno ponto marrom na rua abandonada.
Ela se revolta com o cachorro. Sua liberdade disperdiçada é uma afronta àqueles que não são livres. Se fosse como ele, se pudesse ir aonde quisesse, teria andado o dia inteiro até sair da cidade, e continuaria andando pela estrada, e dormiria sob um céu brilhante de estrelas, e correria loucamente por colinas e vales, e nadaria em rios, e iria à Paris, Tóquio, Londres, São Paulo, à lua. Mas ela não podia, ao contrário dele, porque não era livre, porque era humana, porque, porque – por quê?
A realidade dos fatos caiu sobre ela como um véu de água fria. Por que não podia? Por que não era livre? Por que não saía de casa, agora mesmo, e ia andando até encontrar os limites do mundo? Diz a si mesma que não podia, e isso era verdade, mas não podia por quê? Por mamãe e papai, eles nunca deixariam. Mas, se ela realmente saísse andando, e dissesse que jamais voltaria, o que eles poderiam fazer? Amarrá-la e levá-la de volta? Pouco provável. Dizer que nunca mais falariam com ela? Talvez sim, mas se o que ela queria era justamente sumir, desaparecer, adentrar um mundo desconhecido – e nesse mundo não haveria pai nem mãe, nem nada, nem ninguém; apenas ela, correndo sozinha pelos campos, deixando o vento e a água caírem do céu sobre sua pele nua, deixando o sangue correr por feridas abertas – era viva, e isso era vida, o sangue, o vento, a água, o coração pulsando em seu peito, a fronte ardendo em febre. Sem pais, sem amigos, sem um deus para lhe julgar, apenas ela, ela e o mundo, os dois amantes loucos de paixão, se amando nas profundezas do conhecimento humano...
Há a escola. Mas em que a escola a impedia? Nenhuma escola a ensinaria a viver; ela não aprenderia em nenhuma sala de aula como era pisar em um chão jamais pisado, se banhar em um rio virgem, respirar um ar intocado. Nenhum professor a tomaria em seus braços e lhe mostraria o que é viver, o que era ser mulher, como era ser tocada e amada por um homem – não um garoto, não os tolos e imbecis com quem estudava; mas um homem, senhor de toda a Terra, um protetor, alguém para adorar. Um deus particular, por quem ela realizaria todos os seus sonhos secretos.
Há a morte. Desde muito pequena aprendera a temer a morte como uma substância real, como um ácido corrosivo do qual devia se afastar. Tudo de errado, a morte era o castigo – atravessar a rua sem olhar para os lados, comer coisas desconhecidas, conversar com estranhos. E, no final de todos os medos e receios, o que era a morte senão apenas uma parte da vida? O final, a derradeira demonstração de existência, mas não tão diferente de todas as outras. Morrer era estar vivo, era o sangue, era seu corpo gastando a última gota de suas energias e se entregando de volta ao mundo que o concebera. Os seres humanos morriam em hospitais, ou em quartos tristes e insípidos, ou em poças de sangue no meio da rua; os seres livres morriam sob o céu azul ou sob o brilho das estrelas, morriam rodeados de terra e grama, viestes do barro e ao barro retornarás; talvez sentissem dor, talvez sentissem medo, mas o que eram a dor e o medo senão simples provas da vida? Não queria morrer dormindo, queria viver até o último segundo, sentir o corpo lutando dolorosamente, sentir o peito arrebentando as fibras de vida dentro dela, até que não houvesse mais forças e ela se entregasse – talvez com uma lágrima, talvez com um sorriso de glória, como o do guerreiro que sabe que morre por uma causa justa.
No final, ela pensou, não era tão diferente daquele pobre cachorro, deitado inerte em frente a uma loja fechada, ser que poderia ser belo mas se tornara inútil. Tinha a liberdade nas mãos e a guardava no bolso, por medo, por receio, por comodidade. Eram o mesmo, agora, menina e cachorro; e de repente ela estava no meio da rua, diante dele, nua, deixando o vento frio da noite tocar em seus cabelos tão cuidadosamente penteados, deixando os pés descalços sentirem a imundisse que os seres humanos deixavam para trás ao passarem pelo mundo.
Menina e cachorro se olhavam. Ela nua como ele, um sentindo os medos e desejos do outro. E, pela primeira vez, ela percebeu que tinha um corpo, e que era uma mulher – mas o que era ser mulher? Fazia parte da liberdade desconhecida, dos desejos jamais realizados. O cachorro a olhava, indiferente, assim como ela o olhava – ser despido que nada significava. Ela queria que ele fosse um homem, qualquer homem – um dos meninos que andavam a pedir esmolas pela rua, um dos mendigos sob o viaduto; estes eram mais homens do que qualquer homem com quem ela conversasse todo dia. Um homem que a visse ali, nua, e que a desejasse; e para o qual não haveria medo nem promessas, e que depois a abandonasse para que ela fosse de outros, como era no início do mundo.
Da sala, a mãe chama a menina para o jantar. Ela olha uma última vez pela janela, para o ser adormecido em frente à loja de discos; e então fecha a janela e corre para a sala, onde os pais a esperam, como em todos os seus dias.


SOBRE A HISTÓRIA

Essa é uma daquelas histórias que nasce por si mesma, que brota de sei lá onde e que, quando a gente termina e relê, fica pensando "fui eu que escrevi isso?". A inspiração veio de um conto que li e que não tem absolutamente nada a ver com este, no qual uma menina mata aula pela rua e vê o pai "matando o trabalho" também pela mesma rua. Não me pergunte como que uma inspiração saída de um conto desses resultou nesse outro. É um conto com uma força muito grande e que, embora tenha se "auto-escrito", foi muito difícil de pôr no papel de forma que ficasse legível. Mas acho que o resultado final ficou muito bom.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

[conto #016] Porque Não Tínhamos a Pedra Filosofal

PORQUE NÃO TÍNHAMOS A PEDRA FILOSOFAL

Acompanhei meu mestre por toda a trilha, para dentro da floresta. Estava frio e minha capa estava úmida, mas eu seguia em silêncio. À minha frente ele ia depressa, alto e imponente, com sua capa preta que também estava úmida. Me perguntei se ele também sentia frio.
Paramos aos pés de uma árvore enorme, que na época eu não soube identificar. Não havia sinal de vida por perto, mas o ar era rico em aromas. Ele avisou que aquele era o lugar, e eu fiquei aguardando, observando ele preparar o ritual.
Com um galho fino, ele desenhou um círculo. Dentro do círculo, uma estrela, e dentro desta outra estrela. Mandou que eu lhe entregasse os materiais, e fui lhe dando tudo o que ele pedia: as pedras de sal, os galhos de árvore, os cristais, o cálice, a adaga. Ele colocou uma pedra de sal em cada ponta da estrela interna e um cristal em cada ponta da estrela externa, preparou uma pequena fogueira no centro da estrela interna, e colocou o cálice e a adaga à sua frente, dentro do círculo. Por último, acendeu a fogueira. O ritual começara.
Agora, eu via que não estávamos realmente sozinhos. Havia animais ali, primeiro um coelho, depois um esquilo, depois pássaros. Passavam longe de nós e nos evitavam, mas se mantinham observando, curiosos. Meu mestre me chamou, e eu voltei minha atenção para minha tarefa.
Ele começara a murmurar frases naquela língua que quase ninguém conhecia, e que mesmo eu tinha dificuldades para entender. Acabada a oração, eu lhe entreguei a primeira garrafa; ele a abriu e jogou seu conteúdo no fogo, que aumentou incrivelmente - embora sem sair dos limites da estrela interna - e assumiu um tom azulado. Entreguei a segunda garrafa. Ele encheu o cálice com o líquido verde escuro.
O líquido da terceira garrafa, uma infusão de ervas, foi usado para lavar a adaga. Em seguida ele a colocou no fogo; a lâmina incendiou por um instante, azul, e então se apagou, parecendo ainda mais brilhante. Ele bebeu metade do líquido no cálice, e voltou a murmurar as frases.
Lentamente, como se atraído por uma força que só ele sentia, um filhote de gato do mato se aproximou e entrou no círculo. Ficou ali, parado, diante do fogo. Meu mestre pegou a adaga - eu quis fechar os olhos, mas sabia que não podia - e, com um só movimento, cortou o pescoço do animal, fazendo o sangue jorrar. Colocou o cálice sob o corte, enchendo a metade que faltava da taça com o sangue. O bicho, ainda vivo, se manteve parado, enfeitiçado, até que a taça estivesse três quartos cheia; e então, com um ganido, desabou no chão. Meu mestre disse algo que não pude entender e o jogou na fogueira. Ficamos em silêncio até que todo o pequeno corpo houvesse sido consumido pelas chamas azuis.
Eu sabia o que fazer agora. Sem que fosse pedido, tirei minhas roupas e me ajoelhei ao lado de meu mestre. Na língua ritual ele me fez as perguntas, na língua ritual eu respondi. Estendi o braço, e com a adaga ele fez um corte raso e extenso em mim. O sangue que caiu foi depositado no cálice, até que enchesse o que restava. Mais palavras ditas, por ele e por mim; e então eu bebi todo o líquido, que agora era quase negro. O gosto era amargo e ferroso, e vivo, como se a bebida pulsasse em minha boca. Quando engoli a última gota, o fogo havia se tornado de um azul tão forte que era quase roxo, e soltava estranhas faíscas. O frio desaparecera, eu me sentia muito quente. Podia ouvir qualquer coisa em qualquer lugar na floresta, podia sentir cada respiração de cada ser vivo ao redor.
As últimas palavras foram ditas; a uma ordem, o fogo se apagou. Me vesti, enquanto meu mestre eliminava os vestígios do ritual. No local, ficou apenas um leve vestígio de uma fogueira. Pegamos nossas coisas e voltamos pelo caminho por onde havíamos vindo.
Assim como meu mestre, agora eu era imortal.


SOBRE A HISTÓRIA

Apesar de ter alguns defeitos, gostei muito de escrever essa história. A inspiração para ela veio de uma série de contos que li há cerca de dez anos, cujo tema central era magia. Aqui ainda restam vestígios de alguns vícios de escrita que estou tentando eliminar: excesso de descrições e detalhamentos, exageros na narrativa e formulações confusas nas frases. Gosto muito do tema magia mas ainda estou aprendendo a escrever sobre ele.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

[conto #015] O Infinito, e Além

O INFINITO, E ALÉM

-- Sabia que pedofilia é crime?
Pergunta feita por Ângela, depois que lhe apresentei meu novo namorado.
-- É, eu sei.
Claro que eu sabia. Claro que sabia que eu, tendo trinta e dois anos, não poderia namorar um garoto de catorze. Mesmo eu parecendo ter vinte e cinco. Mesmo ele parecendo ter dezesseis.
-- Você é louca.
-- Não diga.
Ele tinha ido comprar o tal livro, eu fiquei esperando do lado de fora. Carlos, era o nome que a louca da mãe havia colocado nele. Carlos. Eu preferia chamá-lo de anjo.
-- Comprou o livro, meu anjo?
Sim, ele comprara. Não lembro mais qual era o livro - algo para a escola, coisas de química ou matemática. Nem sonhava ainda com o vestibular, palavra estrangeira que representava algo de outro mundo. Algo pelo qual eu já passara há séculos.
Ângela nos acompanhou o resto do dia, estava esperando o Júlio sair da loja. Ele saía às seis, ela foi lá cinco vezes até a loja fechar. Depois que ele saiu eles foram embora, eu fui com Carlos comer alguma coisa.
-- Sua mãe não perguntou aonde você ia?
-- Eu disse que vinha no shopping.
-- Ela não perguntou com quem?
-- Não.
Certas pessoas não deviam ser chamadas de "mães". Não sabe nem onde seu filho está, nem com quem ele anda ou o que faz. Se eu tivesse um filho de catorze anos, não deixaria ele andar por aí perdido. Se Carlos fosse meu filho - e poderia ser - ele não estaria namorando uma mulher de trinta e dois anos.
-- Sabia que pedofilia é crime? - eu perguntei a ele.
-- O que?
-- Pedofilia. Se sua mãe souber que estamos namorando, eu posso ser presa.
Ele não sabia.
-- Mas eu sou homem. Não tem como você me obrigar.
-- Claro que tem. Eu posso pressionar você. Seduzir você.
-- Eu estou com você porque eu quero. Você não me pressionou.
-- Diz isso pra polícia quando descobrirem.
-- Não vão descobrir.
-- Quem sabe?
-- Quer desistir?
-- Claro que não. Você quer?
-- Não.
Ele gosta de mulheres mais velhas. A maioria gosta. Eu não pergunto a ele sobre o futuro do nosso relacionamento. Não exijo que se lembre o dia em que nos conhecemos, nem choro se ele não repara na nova cor do meu cabelo. Eu não grito quando ele põe a mão na minha bunda. E posso comprar bebidas para nós.
-- Está frio aqui.
Já não estamos no shopping. Estamos na feirinha da praça, andando entre o povo e as barracas que vendem de tudo. Ele me abraça pelos ombros, gosta de ser visto comigo. Pensa que já é um homem, o pobrezinho. Tão ingênuo.
-- Quer ir pra outro lugar?
-- Vamos pra sua casa?
De novo aquilo. Eu rio e balanço a cabeça. Claro, podemos ir para a minha casa. Podemos nos beijar e fazer amor a noite inteira.
-- Você tem que voltar às dez, senão sua mãe faz aquele escândalo.
Pelo menos, não podem me acusar de corromper um inocente. Ele já não era virgem antes.
Depois de fazer amor, ele fica olhando para o nada, pensando em alguma coisa. Fica sempre tão sério, nem parece um garotinho.
-- Sabe por que eu estou com você?
-- Não.
-- Quer saber?
Ele finge que tanto faz. Eu sei que quer muito saber.
-- Você é especial.
-- Por quê?
-- Não sei. Especial.
E não sei mesmo. Ele meio ri, me abraça. Gosto do abraço dele. Do cheiro dele. Cheiro de quem não conhece nada da vida.
-- Eu gosto muito de você.
É o que ele diz. Vindo de um garoto de catorze anos, é quase um "eu te amo".
-- Eu também gosto muito de você.
Não vou dizer "eu te amo" para ele, não significaria muita coisa. Também não espero nada dele. Nenhuma frase filosófica. Não espero que ele me pergunte se já li Uma Breve História do Tempo nem se gosto de James Joyce. O máximo que posso esperar é que ele fale sobre algum desenho japonês novo ou sobre um jogo de Playstation. Não espero que ele seja fantástico na cama nem que tenha o corpo de um ator de cinema.
Mas tem uma coisa, alguma coisa, que me faz gostar dele.
-- Quando eu tinha a sua idade, eu namorei um professor de matemática. Não o meu professor de matemática, o da minha prima.
-- Você gostava dele?
-- Gostava. Mas ele era um imbecil.
-- E eu?
-- Você é um anjo.
-- Obrigado.
Embora ele não pareça muito feliz por ser um anjo.
Depois que ele vai embora, passo quase a noite toda olhando distraída pela janela. Para as estrelas que nada significam. E imagino, como uma ridícula adolescente, que ele está olhando para aquele mesmo céu, e que nossos olhos se encontram no infinito.


SOBRE A HISTÓRIA

Essa história poderia ser muito boa, mas eu estraguei ela. Primeiro, por colocar nomes nos personagens; e segundo, porque ela acabou não tendo nenhum objetivo. Mais uma daquelas baseadas em nada, o que talvez explique o resultado final duvidoso.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

[conto #014] Naufrágio

NAUFRÁGIO

Ela abre a torneira da pia e deixa a água cair.
Cai o líquido transparente, transbordando e molhando o chão de azulejos azuis. Escorre pela porta do banheiro e invade corredor, quartos, sala, cozinha. Passa por debaixo da porta e cai pelas escadas, pelo poço do elevador. Inunda a entrada do prédio e corre para a rua, tomando calçada, avenidas, praças, arrastando carros e pessoas.
Pela janela, ela vê a água subir e subir, até alcançar o último andar do prédio, até cobrir o último pico da última montanha.
E, com um último suspiro, o mundo afunda.


SOBRE A HISTÓRIA

Amo esse conto! É um dos meus maiores orgulhos. Adoro escrever coisas surreais. Na época em que o escrevi, ainda não tinha experiência em escrever nesse estilo, por isso tive certas dificuldades, mas o resultado final ficou fantástico (desculpem os elogios a mim mesma). Esse conto, e todos os outros que escrevi nesse estilo, são inspirados nos contos do livro Contos de Amor Rasgado, de Marina Colasanti.

terça-feira, 16 de junho de 2009

[conto #013] Uma Possível Cópia

UMA POSSÍVEL CÓPIA

Eu estou parada no ponto, esperando o ônibus. Estou com os fones no ouvido, mas não ouço nada. O rádio do celular não funciona, e eu não tenho mp3. Mas gosto de ficar com os fones no ouvido. Assim não tenho que escutar as bobagens que as duas adolescentes do meu lado estão discutindo.
-- Oi.
Olho pra baixo. Uma menina de uns cinco anos está me olhando e, por algum motivo, sorrindo pra mim. Tento fingir que não a vi. Não, meu Deus, não hoje.
-- O que você tá ouvindo?
-- Nada.
Ali, no ponto, estão mais umas oito ou nove pessoas, além de mim, da menina, e das duas mulheres que deveriam estar tomando conta dela. Mas ela tinha que vir falar comigo. Eu atraio isso.
-- Qual o seu nome?
Incrível. Ela não percebe que eu não estou a fim de papo. Parece muito comigo quando era pequena, o que é preocupante. Nunca vai se tornar uma pessoa normal.
Digo meu nome. A menina diz o dela.
-- Você não tá ouvindo nada?
-- Não.
-- Então por que tá com os fones no ouvido?
-- Porque eu gosto.
É sempre assim. Pessoas que têm medo de cachorro sempre são atacadas por cachorros, sempre entram borboletas na casa de quem odeia borboletas. Sempre vem alguma criança falar comigo. Como se eu fosse feita de doces.
-- Você é bonita.
Que criança adorável. Pena que seja cega.
-- Obrigada.
-- Você tá esperando o ônibus?
Não, querida, estou esperando um avião pousar aqui e me dar uma carona.
-- Sim.
-- Você vai pra onde?
-- Pra lá.
Digo "pra lá" sem apontar nenhuma direção. A menina nem percebe.
-- Quantos anos você tem?
-- Vinte e um.
-- Eu tenho cinco.
Um carro pára. É minha tia, me oferecendo carona. Graças a Deus.
-- Tchau, moça!
Aceno e entro no carro. Minha tia ri.
-- Ganhou uma amiguinha?
Eu rio.
-- Deus que me livre.
-- Tadinha. Você já foi assim.
-- Eu sei. Mais um motivo pra não gostar de quem é assim agora.
-- Um dia você vai ter filhos, e eles podem ser assim.
-- Eu acho que não.
-- A gente sempre acha que os filhos vão ser uns anjos, mas no final...
-- Acho que não vou ter filhos.
-- Claro que vai.
-- Não acho uma boa idéia. Já tem gente demais no mundo.


SOBRE A HISTÓRIA

Mais um conto baseado em fatos reais. Dessa vez, misturei dois acontecimentos distintos envolvendo meus amigáveis relacionamentos com seres abaixo dos dez anos. Para quem não sabe, eu não sou muito chegada em crianças e sou a favor da auto-extinção da raça humana através da não-procriação.

terça-feira, 9 de junho de 2009

[conto #012] O Desafio

O DESAFIO

As duas têm doze anos, um metro e setenta, e nenhum juízo.
-- Eu duvido que Deus exista!
-- Claro que existe!
-- Duvido! Cadê a prova?
-- Tá na Bíblia.
-- E como eu sei que o que tá na bíblia é verdade? E se for tudo mentira?
-- Mamãe disse que é verdade.
-- Sua mãe não sabe nada.
-- Sabe sim!
-- Não sabe nada.
Vão andando pela rua, discutindo. Falam tão alto que qualquer um ao redor pode ouvir.
-- Eu acho que Deus não existe. Que isso tudo que contam pra gente é tudo mentira.
-- E por que iam mentir desse jeito pra gente?
-- Pra fazer a gente obedecer eles! Eles dizem, se você desobedecer sua mãe Deus castiga, se você matar alguém, Deus castiga. Pra mim isso tudo é besteira!
-- Não fala isso, depois Deus escuta e castiga você.
-- Castiga nada, porque Deus não existe!
-- Existe sim!
-- Vou provar que não existe!
-- Provar como?
Ela se arrepende de ter perguntado. A outra para decidida. Olha para cima, para o céu nublado.
-- Deus! - ela grita, para as nuvens, o mais alto que consegue - Se você existe, então prova!
Algumas pessoas chegam a parar para olhar a cena. A outra quer ir embora o mais depressa possível.
-- Amiga, para com isso, tá todo mundo olhando...
-- Anda, Deus! - ela continua gritando - Se você existe, se tem tantos poderes, então me dá uma prova! Faz cair um raio aqui, faz chover, faz alguma coisa!
-- Amiga...
-- O que é, tá dormindo? Aloooo, Deus? - ela para de gritar - Viu, cadê? Deus não existe.
Houve-se um trovão ao longe. As duas olham para cima. O céu está ficando escuro.
-- Acho que vai chover.
-- Viu? É Deus! Deus está te dando uma prova!
-- Não é nada! Grande coisa, chover. Tinha que ser uma coisa extraordinária para...
Um clarão e um estrondo, anunciando que um raio caiu bem mais perto do que antes. Começa a ventar. A atmosfera fica pesada. Faz frio.
-- Oi, Deus! - ela grita de novo - Eu não acredito em você! Não acredito!
O vento aumenta mais ainda, relâmpagos cortam o céu, começa a chover, um som fantasmagórico é ouvido. As duas gritam e saem correndo. Chegam em casa ensopadas, e ficam olhando, da varanda, a tempestade que cai. Parece que o mundo esta desabando.
-- Eu disse pra você não provocar.
-- Cala a boca.
-- Foi Deus.
Ela cruza os braços, brava.
-- Não foi nada.
-- Ele ficou com raiva de você.
-- Dane-se. To nem aí. Não acredito nele mesmo.
-- Mas ele acredita em você.
-- É. - ela sorri - Eu sou melhor do que ele. Eu não tenho que provar que existo, ele é que tem.
-- Chega. Daqui a pouco ele traz um furacão e leva sua casa embora.
-- Leva nada.


SOBRE A HISTÓRIA

Por incrível que pareça, essa história foi baseada em fatos reais. A menina doida que fica gritando para ver se Deus existe sou eu, e eu fiz mesmo isso, quando tinha uns onze ou doze anos. As consequências foram realmente as que eu descrevo. Lembrando essas coisas agora, não sei se rio ou se me envergonho.

terça-feira, 26 de maio de 2009

[fanfic #002] [U2] Uma Noite

AVISOS:
  • História não recomendada para menores (sexo)
  • Esta é uma fanfic sobre U2; recomendo que apenas fãs da banda a leiam.
  • História proibida para homens.

UMA NOITE

Eu o conheci muito antes de que ele me conhecesse. Bono. Esse homem permeou todos os momentos da minha adolescência. Fosse com sua voz maravilhosa, com seu rosto lindo, com suas frases – desde os meus doze anos, ele sempre esteve presente.
Durante meu primeiro beijo, foi nele que pensei, em sua boca, em como seria seu gosto. Na minha primeira vez, era ele que estava em minha mente, eu me imaginava arranhando suas costas fortes, segurando em seus braços – meu Deus, aqueles braços – puxando seus longos cabelos escuros. Todos os meus namoros terminaram pelo mesmo motivo: por mais que o rapaz fosse bonito, carinhoso, atencioso, nunca era quem eu queria. Nunca era Bono.
Apesar disso, nunca saí da realidade. Sempre tive plena consciência de que aquilo era só fantasia. Eu nunca conheceria Bono. Jamais sequer iria a um show deles. Minha família era pobre, e o dinheiro que eu ganhava como garçonete em um posto de beira de estrada mal dava pra pagar minhas contas. Pra piorar, nós vivíamos numa cidadezinha pequena da Alemanha. Por mais que eu desejasse ardentemente ficar frente a frente com Bono, tinha a certeza de que isso jamais aconteceria.
Mas aconteceu.
Lá estava eu, com vinte anos, vestindo meu uniforme vermelho e amarelo, terminando de limpar as mesas. Era quase uma hora da manhã, já passara da hora de fechar; até o gerente fora embora, e deixara o fechamento da lanchonete por conta minha e de Dominic, um colega de serviço e grande amigo.
-- Acabei aqui, Dom.
-- Vai fechando as janelas, eu estou terminando de... Ah, droga...
Segui seu olhar: lá fora, um carro estacionara. Como o nosso era o único estabelecimento aberto, era óbvio que eles estavam indo para lá.
-- Vá para a cozinha, Ellen. Eu digo que estou sozinho e que estamos fechados.
Corri para a cozinha, antes que quem quer que fosse me visse, e aguardei pacientemente. Alguns minutos depois, Dominic apareceu.
Levei um susto. Ele estava pálido como se tivesse visto um fantasma, e gaguejava.
-- Ele... Isso... Você...
-- Dom? Calma, criança! Você dispensou os clientes?
-- Não. - ele balançava a cabeça – Acho... Acho melhor atendê-los...
-- Mas...
-- V-v-você... Você tem que ver isso...
-- Isso o que?
Sem mais explicações, ele me arrastou para fora da cozinha. Quando chegamos na porta, ele disse baixinho em meu ouvido:
-- Não desmaie, não grite, e não morra.
Eu ia dizer “o que?”; mas nesse momento eu vi, e todas as perguntas se tornaram desnecessárias. Ali, sentados, ocupando uma das mesas grandes, estavam eles.
Na ponta esquerda, um homem alto, moreno, com cabelos curtos e óculos de grau. Ao seu lado, um homem um pouco mais baixo, de pele muito branca e com doces, inocentes olhos verdes. Na outra ponta, um homem loiro, forte, de olhos muito azuis. E, entre este e o de olhos verdes, estava ele.
Ele era o menor dos quatro, mas seu comportamento o fazia parecer maior do que todos. Sua presença preenchia todo o lugar. Ele tinha cabelos escuros e rebeldes, longos para um homem, pelo menos um homem da minha cidade. E tinha os olhos mais azuis e profundos que eu já vira. Eu jamais esqueceria aqueles olhos. Era ele. Bono.
Eu estava diante do U2.
Tudo começou a ficar escuro, achei que fosse desmaiar. Mas Dominic me beslicou de leve e disse:
-- Vai lá. Eles são seus.
Hesitante, tremendo, fui até a mesa. Eles voltaram suas atenções para mim, e eu murmurei, surpresa por ser capaz de falar:
-- B-b-boa... Noite. - eu era fluente em inglês, mas na hora tive a certeza de que soava como uma estudante de primário.
-- Boa noite, querida. - disse Bono, assumindo o papel de lider, e me jogando um estonteante sorriso – Nos desculpe por chegar tão tarde.
-- Oh, tudo bem, é uma honra pra mim, digo, pra nós, atender vocês... - Bono sorriu de novo, e eu senti que corava até a raiz dos cabelos – Vocês desejam alguma coisa?
Desejavam. Edge pediu um sanduíche completo, batatas fritas, e coca-cola. Adam queria dois cachorros-quentes, um hambúrguer, picles, guaraná e sorvete de chocolate. Larry se contentou com apenas uma pizza grande, refrigerante e batatas-fritas. Por último, Bono pediu um hambúrguer gigante, batatas-fritas, mini-pizza, coca-cola, torta de sorvete e bolo de morango.
É óbvio que demorou a sair, mas eles não tinham pressa. Eu e Dominic nos desdobramos na cozinha, e conseguimos preparar tudo. Eu os servi e ia voltar para o balcão, para deixá-los à vontade; mas Bono me chamou:
-- Por favor, meu anjo...
-- Sim?
-- Como você se chama?
-- Ahm... Ellen.
-- Ellen. Lindo nome para uma linda pessoa. - eu corei de novo – Você não gostaria de nos fazer companhia?
-- Q-que? Eu?
-- Isso, querida. - disse Edge – Junte-se a nós.
Quem era eu para protestar? Me sentei com eles, e de repente me vi cercada pela atenção dos quatro U2's.
-- Quantos anos você tem? - Adam perguntou.
-- Vinte.
-- Você mora aqui, Ellen? - perguntou Larry.
-- Moro, eu nasci aqui.
-- E nunca conheceu outros lugares?
-- Não. O máximo que eu já fiz foi ir até uma cidade vizinha.
-- Você mora com seus pais? - disse Edge.
-- Não, eu moro de aluguel. Tive que sair de casa porque já tinha gente demais lá.
-- E sua casa é perto daqui?
-- Mais ou menos, fica a meia hora a pé. Eu venho e volto andando todo dia.
O único que não perguntava nada era Bono. Comia o seu lanche em silêncio, mas atento a cada palavra nossa. Achei que era o momento de eu fazer as perguntas.
-- E vocês, o que fazem aqui? Digo, não tem nenhuma cidade grande aqui perto... Eu juro que nunca pensei que veria vocês nesse lugar, muito menos a essa hora.
-- Viemos visitar um amigo. - disse Adam – Ele mora em uma cidade perto daqui. Agora estamos indo pra Berlim.
-- Mas ainda são quase três horas até Berlim. Não é melhor ficarem em um hotel?
-- Nós pensamos nisso. - disse Larry – Mas não sabemos de nenhum hotel por aqui.
-- Tem um no centro da cidade. Mas... Acho que não é bom o suficiente para vocês...
Eles riram.
-- Querida – disse Edge – você não faz idéia dos logares em que já dormimos.
Eu ri.
-- Posso dar o endereço pra vocês, então. Não é difícil de achar.
Então, Bono falou:
-- Por que não nos leva até lá?
Achei que ia cair da cadeira.
-- L-levar vocês?
-- Isso. Vai nos poupar tempo. Mas é claro, se estiver ocupada...
Nesse momento Dominic surgiu do ar.
-- Vai lá, Ellen. Eu termino de arrumar aqui.
-- Posso mesmo?
-- Claro, boba. Vai lá.
Mais um dos muitos favores que eu devia a Dominic. E lá fui eu, guiando o U2 pela minha pequena cidade.

* * * * *

Larry dirigia. Bono ia ao seu lado, e eu estava entre Edge e Adam. Viemos todos conversando, como se eles fossem pessoas normais e não os integrantes da melhor banda de rock do mundo. Eu me sentia mergulhada em um sonho.
Para a minha tristeza, chegamos ao hotel. Eles pediram os quartos, e eu me vi tristemente despertando.
-- Bom, eu tenho que ir. - eu disse – Boa viagem pra vocês.
-- Obrigado, querida. - disse Edge – Você foi muito gentil com a gente.
Para meu deleite, recebi um caloroso abraço de Edge, Adam e Larry – caloroso demais, diga-se de passagem. Mas, quando fui abraçar Bono, ele disse:
-- Sua casa fica perto daqui?
-- Fica, ahm, uns quinze minutos andando...
-- Eu te levo.
-- Que?
-- Eu te levo de carro. Não é bom uma moça ficar andando sozinha à noite.
Eu ia dizer que não precisava, para ele não se incomodar; mas algo no jeito como ele me olhava me fez apenas murmurar:
-- Obrigada.
Ele sorriu. Pegou as chaves com Larry e disse para os outros:
-- Eu já volto.
Os outros sorriram. Adam sussurrou algo no ouvido de Bono que o fez rir alto. Então, nós voltamos para o carro.
Andar de carro com Bono como motorista era definitivamente emocionante. Mas, apesar da minha contínua sensação de que ele não tinha a menor idéia do que estava fazendo, nós conseguimos chegar à minha casa inteiros.
Quando o motor parou, o silêncio da noite invadiu meus ouvidos. Olhei para Bono, que me observava com um olhar penetrante. Ali estava eu, sozinha com o homem com quem sonhara a vida inteira, dentro de um carro, em uma rua deserta. E tinha que ir.
-- Eu... Ahm... Obrigada por me trazer até aqui.
-- Foi um prazer.
-- Bono...
-- Sim?
Eu não sabia o que dizer. Ele sorriu e tocou meus cabelos. Só então percebi que não o tocara ainda, e precisava consertar isso. Me aproximei mais e toquei em seus cabelos: eram tão macios quanto eu sonhara. Minhas mãos escorregaram para seu rosto, e eu senti sua pele quente, sua barba, seus lábios. Ele segurou minha mão e a beijou suavemente. Eu sabia que aquele era um momento importante, tinha que dizer alguma coisa.
-- Bono... Eu... Eu sonho com você desde os meus doze anos...
Ele riu. Deus, como eu amava aquele riso.
-- Quando você me conheceu?
-- Foi no show do Live 8. Desde que eu te vi naquele show, não teve um único dia da minha vida que eu não tenha sonhado com você.
-- E com o que você sonha?
-- Ah, com... Com tudo o que as fãs sonham...
-- E com o que as fãs sonham?
-- Ah, você sabe... Ver você, te abraçar, te tocar... Subir no palco com você, ganhar um beijo seu... Ganhar um autógrafo...
-- Hum... - ele riu – Vamos ver... Infelizmente não temos um palco aqui, mas quanto ao resto acho que podemos dar um jeito. Vejamos, abraço...
Com um sorriso, ele se inclinou para mim e me abraçou. Um abraço ainda mais caloroso do que os que eu tinha recebido dos outros. Quando ele me soltou, eu estava tonta.
-- Bem – disse ele – abraçar e tocar já foram. Ah, sim, o autógrafo...
Ele pegou um papel e uma caneta e escreveu algo, que me entregou. Eu li: “para minha querida Ellen, com amor, Bono”. Sorri.
-- Obrigada.
-- De nada. - ele sorria – Mas acho que ainda falta algo, deixe-me ver... Oh, sim... O beijo...
Antes que eu pudesse entender o que estava acontecendo, Bono estava segurando meu rosto e me dando um suave beijo. Foi muito leve, mas o suficiente para que eu sentisse o calor dos seus lábios, e foi como se eu tivesse recebido um choque elétrico.
-- Shhh... - ele sussurrou em meu ouvido, enquanto acariciava meus cabelos – Você está tão tensa... Se acalme, meu anjo...
Toquei nos cabelos dele e beijei seu rosto. Bono se virou para mim, e nossos lábios se encontraram em um casto mas poderoso beijo.
Ele se afastou de mim, e eu permaneci ainda algum tempo de olhos fechados, gravando em minha mente a sensação de seus lábios contra os meus. Quando abri os olhos, ele estava sorrindo.
-- Realizei seus sonhos?
Abri a boca, mas descobri que era incapaz de falar. Fiz então a única coisa que podia fazer: o abracei e apoiei a cabeça em seu peito. Ele correspondeu ao abraço, e ficou acariciando meus cabelos.
-- Obrigada. - eu consegui dizer bem baixinho, e ele beijou minha cabeça.
Era hora de ir. Me afastei dele, com lágrimas nos olhos, e disse:
-- Acho... Que tenho que ir...
Ele não sorria mais, mas tinha uma expressão branda no rosto e um brilho intenso no olhar. E eu senti que ainda havia algo a ser feito.
-- Bono...
-- Sim?
-- Você... Você quer... Entrar?
Pronto. Estava dito. O que quer que ele pensasse de mim, eu não podia voltar atrás.
-- Você quer que eu entre?
-- Quero.
Um sorriso surgiu em seu rosto, mas era diferente dos outros: havia algo por trás dele, uma intensão, uma malícia. Entramos em casa, e eu disse, um pouco nervosa:
-- Você... Quer beber alguma coisa?
-- Você tem Guiness?
-- Tenho, sim. É a minha preferida. Sente-se, eu já trago.
Deixei ele na sala, e fui buscar a cerveja. Voltei logo, trazendo duas garrafas e dois copos. Nos servi e sentei ao lado dele, dizendo:
-- Quer ver tv?
-- Não. - ele tocou meu rosto – Quero ver você.
Não sei por quanto tempo ficamos conversando e bebendo. Chegou ao ponto em que ríamos como duas crianças.
-- Então, Ellen – ele disse – você e aquele rapaz sempre ficam até mais tarde na lanchonete?
-- Ah, não... Nós saímos com os outros, às onze. Mas hoje o movimento foi grande, então ficamos até mais tarde. Quando isso acontece, nós geralmente somos os únicos dispostos a fazer hora extra.
-- E aí ele volta com você?
-- Sim, ele sempre me acompanha até em casa.
-- Hum... Vocês estão juntos?
-- Juntos?
-- Juntos. Namorados. Amantes.
-- Oh, não... - fiquei um pouco sem jeito – Não... Eu e o Dominic somos só amigos.
-- E nunca rolou nada? Ele parece gostar de você.
-- Ele é meu melhor amigo. Mas nunca rolou nada.
-- Por quê? Ele não faz seu tipo?
-- Ele é gay.
-- Oh... Entendo. Ninguém é perfeito. Mas e você? - ele se inclinou para mim – Tem namorado?
-- Não. Já faz um tempo que estou sozinha.
-- Por quê? - ele chegou mais perto – Uma garota como você pode ter o homem que quiser.
Senti que estava ficando vermelha.
-- Não é bem assim. Eu namorei com uns caras legais, mas... Não era eles quem eu queria.
Ele estava agora muito perto de mim. Eu podia ver cada detalhe em sua pele, sentir o cheiro de seu perfume...
-- E quem você queria?
-- Você.
Bono tocou meu rosto.
-- Essa noite você pode ter tudo o que quiser.
Antes que eu pudesse sequer entender o que ele tinha dito, ele me abraçou e me beijou. Senti que perdia completamente as forças. Ele passou a língua por meus lábios, e eu os abri, lhe entregando minha boca.
O beijo, que antes era calmo, tornava-se selvagem conforme ele explorava minha boca. Escorreguei sobre o sofá, e ele se deitou sobre mim. Eu agarrei seus cabelos, e ele beijou meu pescoço, me arrancando suspiros. Mas então um fragmento de realidade se infiltrou em minha mente, e eu disse:
-- Pare!
Ele parou, bastante surpreso.
-- O que houve?
-- Eu... Eu não posso.
-- Por quê?
-- Eu... Você... Não é certo. Você é casado, tem duas filhas...
-- Isso não importa.
-- Claro que importa! A Ali... As meninas...
-- Eu as amo. - ele tocou meu rosto – Mas elas estão na Irlanda, e eu não as vejo já a um mês. Eu estou tão sozinho, Ellen... - ele beijou meu pescoço – Eu preciso tanto de você...
Aquilo era tortura. Murmurei:
-- Bono... Não...
-- Esqueça tudo, meu amor... - ele olhou em meus olhos – Nessa noite não existe mais nada, só você e eu, e o que nós dois desejamos. É a noite para realizarmos todos os nossos sonhos.
-- Os meus... Sonhos...
Deus, ele era tão persuasivo, tão sedutor. E eu era só uma mulher solitária, pouco mais que uma menina, que o amava e que ainda trazia consigo os sonhos adolescentes. No fundo, eu sempre soube que não tinha a menor chance de resistir.
Eu o abracei, me entregando a seus beijos.
Não sei por quanto tempo ficamos naquele sofá, perdidos nos braços um do outro. Por muito tempo só nos beijamos, beijos cada vez mais quentes, mas apenas beijos. Mas uma hora ele tentaria mais, e de fato aconteceu: eu mordi seu pescoço de leve, e ele gemeu, levando uma mão para meu seio. Eu suspirei, mas novamente uma parte da realidade surgiu na minha mente: eu estava prestes à me entregar àquele homem maravilhoso, e estava vestindo um uniforme de garçonete, tinha trabalhado o dia inteiro e cheirava a fritura. Não podia ser assim.
-- Espera! - eu disse, o afastando.
-- Algum problema?
-- Não assim! - eu me levantei – Eu preciso... Preciso tomar um banho, me arrumar...
-- E isso não vai demorar muito, vai?
-- N- não. Fique... Fique aí, eu já volto.
Corri para o quarto, joguei a roupa em um canto e entrei no banheiro. Depois escolheria uma roupa. Abri o chuveiro e deixei a água quente cair sobre mim.
Tentei organizar os pensamentos. Eu encontrara Bono, ele se interessara por mim e agora estava ali, na minha sala. Nós tinhamos trocado beijos apaixonados. Nós íamos fazer amor. Eu iria fazer amor com ele, e ele estava esperando por mim. Era tão louco. Eu sempre falara mal de mulheres que dormiam com homens casados, ou com homens bem mais velhos. E ali estava eu, prestes a fazer a mesma coisa. Mas aquele não era só um homem: era Bono. E ele nem era tão mais velho, só doze anos...
Quase dei um grito quando me virei e vi Bono ali, apoiado na parede, me engolindo com os olhos. Eu tinha deixado a porta aberta por costume, mas nunca imaginei que ele se aproveitaria disso.
-- Sabe – ele disse – acho que também preciso de um banho.
Eu assisti enquanto ele se despia, incapaz de me mover. Sua camisa foi para o chão, revelando seu peito forte, sua barriga. Eu passei a língua pelos lábios quando ele desafivelou o cinto e desabotoôu a calça, em seguida abrindo o zíper, bem lentamente. Deus do céu. Sua roupa estava no chão, e o primeiro pensamento que passou pela minha cabeça foi que, afinal, a lenda de que ele não usava cueca era verdadeira. Que bela visão.
Ele entrou no chuveiro comigo. Estavamos tão perto agora, e eu me vi desprovida de toda a capacidade de raciocínio. Bono me puxou para si, e nos perdemos em beijos e carinhos.
Foi o melhor banho da minha vida. As mãos dele correndo por meu corpo, esfregando o sabonete em mim, me fizeram ver estrelas. E quando eu fiz o mesmo nele, o jeito como ele gemia me fez acompanhar seus ruídos – Deus, ele era capaz de fazer alguém ter um orgasmo apenas com sua voz.
-- Você tem camisinha?
Ops.
-- Não... Faz tanto tempo que...
Ele suspirou e balançou a cabeça.
-- Tsc. Menina má. Isso podia acabar com a nossa noite. - ele sorriu – A nossa sorte é que eu sou um rapaz precavido.
Saindo do chuveiro, ele foi até suas roupas e tirou, de dentro do bolso da calça, três camisinhas.
-- Você sempre anda com isso?
-- Claro. - ele deixou duas camisinhas na pia e voltou para o chuveiro – Nunca se sabe quando eu vou encontrar alguma linda garçonete em um posto de beira de estrada.
Eu ri. Ele me abraçou e beijou meu pescoço, enquanto tocava meu seio com uma das mãos. Logo, ele substituiu a mão pela boca. Eu agarrei seus cabelos quando sua mão foi para entre as minhas pernas.
-- Bono... Deus, Bono...
Era delicioso falar aquele nome, depois de tanto tempo tomando cuidado para não dizê-lo em vóz alta. E eu gritei alto quando Bono me pegou no colo e me fez colocar uma perna ao redor de sua cintura. Eu nem tinha visto ele colocar a camisinha. Ele devia ter umas quatro mãos, no mínimo.
Quando eu senti ele entrando em mim, achei que fosse desmaiar de prazer. Eu implorava por ele, agarrando os pêlos de seu peito, e ele se movia lentamente dentro de mim.
-- Você gosta disso?
-- Oh, sim...
Ele aumentou a força, e eu gemi alto.
-- Você acha grande?
-- Deus, sim... É enorme... Ah...
Bono deu uma risada rouca, os olhos brilhando de prazer e orgulho. Eu não tinha dito aquilo só pra agradar, e ele sabia disso. Era a primeira vez que eu via um tão grande, e o jeito como ele se encaixava em mim estava me deixando louca.
-- Ah... Ah, Deus... Bono, não pára... Não pára...
O ritmo dele era cada vez mais rápido e mais forte, e eu não pude mais me conter: agarrei seus cabelos e gritei alto, sentindo ele empurrar dentro de mim com tanta força que chegava a doer – não que eu reclamasse.
Desabei sobre ele, apoiando a cabeça em seu ombro, e deixando que ele me amparasse. Tinha apenas uma leve consciência de ele ainda se movendo dentro de mim, e fiquei apenas esperando que ele terminasse.
Para a minha surpresa, ele saiu de mim sem ter terminado. Levantei a cabeça, confusa, e disse:
-- O que houve?
-- Espere. - ele murmurou com dificuldade, a respiração tão rápida que quase o impedia de falar.
Esperei até que ele tivesse recuperado o controle, o que demorou algum tempo. Por duas vezes um tremor passou por seu corpo, e tive a certeza de que ele não conseguiria. Mas ele conseguiu se controlar, e sua respiração se regularizou.
-- Por que você não...
-- A noite é longa, querida. - ele fechou o chuveiro – E ainda é cedo. Vamos para o quarto.
Fomos para o quarto. Bono tirara a camisinha, e se deitou ao meu lado na cama, me abraçando. Eu passei a mão por seu rosto, por seu peito, saboreando a presença daquele homem incrível.
-- Eu mal posso acreditar que você está aqui, comigo... - eu estava emocionada – Me diz que não é um sonho...
Ele sorriu, afastando uma lágrima que caíra pelo canto do meu olho.
-- Isso é real, Ellen. Eu estou aqui. - ele colocou minha mão sobre seu coração – Sinta.
-- Bono... - eu o beijei – Eu te amo, te amo mais do que tudo, eu daria minha vida pra você...
Deitei em seu peito, ouvindo as batidas fortes de seu coração.
-- Você é uma garota especial. Me sinto honrado por ter o seu amor.
Eu beijei os mamilos dele, mordendo de leve, e ele gemeu. Beijei seu pescoço, e então disse:
-- Eu quero chupar você.
Ele abriu um enorme sorriso.
-- À vontade, querida.
Comecei a beijar o corpo dele, descendo lentamente, e fiz o que tinha dito. Bono amava aquilo, e eu amava as coisas absurdas que ele falava. Mas, de repente, ele saiu da minha boca, dizendo:
-- Pare! Espere, espere!
Parei.
-- O que foi?
-- Eu quero entrar em você de novo.
Já que ele queria tanto... Ele colocou outra camisinha, subiu em mim, e logo estava dentro de mim novamente. Mas, ao contrário do que eu imaginara, aquilo se estendeu por muito tempo. Ele se movia bem devagar, e eu amava isso. Amava tudo o que ele fazia.
Ele segurou meus quadris em um ângulo diferente e empurrou fundo dentro de mim. Eu gritei; nunca tinha sido penetrada tão profundamente. E Bono parecia saber disso, porque disse:
-- Você gosta disso assim?
-- Oh... Sim...
-- Eu não te machuco?
-- Não, é... É incrível... Deus, Bono, mais...
Bono me atendeu, mantendo o ritmo forte dos quadris, a penetração muito profunda. Eu mordi os lábios, sentindo que estava prestes a ir de novo. E ele também sentia.
-- Isso, querida... Oh, céus... Eu amo isso, amo estar dentro de você... Sua boca é maravilhosa, mas aqui embaixo é... É divino... Ohhh... Aaaah...
Com aquela voz maravilhosamente rouca, dizendo aquelas coisas, eu poderia ter um orgasmo só de ouví-lo. Com ele se movendo daquela forma, me tocando daquele jeito, só havia um final possível para mim.
Eu me agarrei a ele, arranhando suas costas, e tive o maior orgasmo da minha vida.
Só me lembro de depois abrir os olhos lentamente, com a leve sensação de estar voltando a mim. Bono ainda se movia de forma selvagem. Deus, ele não se cansava nunca? Mas assim que pensei isso, ele disse:
-- Oh... Eu... Eu estou perto...
E ele estava, estava muito perto, bastava olhar para seu rosto para perceber isso. Sua expressão era de alguém que estava recebendo um prazer extremo, insuportável. Ele não aguentaria nem mais um segundo.
A mais bela visão da minha vida. Bono gritando, os olhos semi-abertos, o suor brilhando em sua pele, os cabelos grudados ao rosto como rios negros.
Em seguida o silêncio, quebrado apenas pela respiração ainda forte de Bono. Ele estava caído sobre mim, totalmente inerte, e não havia nada melhor do que sentir o peso dele sobre meu corpo.
Quando ele se recuperou, deslizou para o lado, passou um braço ao meu redor e disse:
-- Você gostou?
-- Sim. - eu apoiei a cabeça em seu peito – Foi a melhor noite da minha vida.
-- Também foi especial para mim. - ele beijou minha cabeça – Obrigado por isso.
Eu o abracei, e logo nós dois dormiamos.

* * * * *

Não sei que horas eram quando acordei, mas o sol já estava alto. Bono não estava ao meu lado. Sentei na cama, um pouco confusa. Será que tinha sido um sonho?
Nessa hora a porta do banheiro se abriu, e Bono apareceu. Estava vestido, e a camisa estava aberta, revelando seu peito, aqueles pêlos que eu tinha agarrado com tanto desespero na noite anterior.
-- Bom dia, querida. - ele disse, vindo em minha direção – Já acordou?
-- Já está tarde pra mim. - segurei a mão dele – Você ia embora sem se despedir?
-- Claro que não. - ele beijou meu rosto – Eu jamais faria isso.
Um dia abro um curso chamado “Como Saber se um Homem está Mentindo”. Tenho certeza de que, se eu não tivesse acordado, ele teria ido embora me deixando apenas um bilhete.
Levantei-me, sonolenta, e fui andando para o banheiro. Mal registrei o fato de que estava nua, mas Bono o registrou, e veio atrás de mim. Eu ri quando ele me abraçou, e disse:
-- Não, Bono... Eu tenho que me lavar...
-- Sim... Eu quero, querida, e quero agora...
Adorei ver ele se impôr daquele jeito. Nos beijamos, e logo ele me empurrou para baixo, me fazendo ficar de joelhos. Ele apenas abriu o zíper da calça, e eu fiz o resto. Em dez minutos, o gosto dele estava em minha boca, e pela primeira vez na vida eu fiquei feliz em sentir aquilo.
-- Posso me arrumar agora?
Ele apenas fez que sim com a cabeça, incapaz de falar qualquer coisa. Eu fui tomar banho, e quando saí, Bono não estava no quarto. Me vesti e fui para a sala, onde ele estava sentado no sofá, lendo o jornal. Passei os braços ao redor de seu pescoço e beijei seu rosto, e ele sorriu. Eu disse:
-- Vamos tomar café da manhã?
-- Vamos. - ele pôs o jornal de lado – Estou morrendo de fome.
Tomamos café juntos, e ele realmente estava com muita fome. Depois que terminamos, eu pedi para que ele ficasse ainda algum tempo, mas ele disse que tinha que ir.
-- Sinto muito, querida. - ele me abraçou pela cintura – Os outros devem estar me esperando. Temos compromissos em Berlim, e amanhã tenho uma reunião em Roma.
-- Tudo bem... Eu nunca vou esquecer isso, Bono. Foram os melhores momentos da minha vida, e eu nunca vou encontrar um amante como você.
Quase pude ver o orgulho transbordando dele e caindo no tapete.
-- Também foi uma noite incrível para mim. Poucas vezes eu gostei tando de fazer amor com alguém quanto gostei com você. Eu prometo que nunca vou te esquecer. - ele me beijou – Ellen.
-- Eu te amo.
Trocamos um longo beijo de despedida. Quando ele foi embora, fiquei assistindo da porta até que seu carro sumisse, me perguntando quanto tempo iria demorar para ele esquecer meu nome.