terça-feira, 25 de novembro de 2008

[conto #007] 502

502

-- Que coisa horrível, né?
O homem aponta para a manchete do jornal no meu colo: "Criança morre ao cair de sexto andar".
-- O que é horrível?
-- O menino que morreu.
-- O menino é horrível?
-- Não, cara, a morte dele... Não tá sabendo, não?
-- To, sim.
-- Não é horrível?
-- Não acho.
-- Não!? Como, não? Não é horrível um moleque de 6 anos morrer desse jeito?
Ele está sentado a cinquenta segundos do meu lado e já disse trinta e quatro palavras. Incrível.
-- Criança morre a toda hora.
-- Ah, cara, mas assim...
-- Tem muita morrendo agora. De jeitos bem piores. Esse aí morreu bem.
-- Olha, meu, cê tá dizendo isso porque não é ligado em criança. Nunca viu um pequenininho morrer na sua frente. É triste, cara.
-- Eu tive um filho que morreu de câncer há três anos. Ele tinha sete.
Isso faz ele calar a boca por uns três segundos.
-- Porra, meu, sinto muito. Sinto muito mesmo.
-- Tudo bem.
-- Mas cara, eu achei que quando um cara assim tipo você que nem te aconteceu, de perder o filho, o cara ficasse tipo mais sensível com essa parada de criança.
Demoro um pouco pra entender o que ele disse.
-- Acha que, por ter perdido o meu filho, eu deveria ficar triste sempre que ouvir falar da morte de uma criança?
-- Claro, cara, todo pai fica...
Bem, ele quer conversar. Então, vamos conversar.
-- Claro que não. Pelo contrário. A morte do meu filho fez com que eu parasse de me importar com essas coisas.
-- Eu não entendo, meu. Na moral que não entendo.
-- Meu filho morreu, certo?
-- Certo.
-- Ele era a pessoa mais importante pra mim, entende?
-- Claro, cara, se você era o pai dele...
-- Eu não queria que ele morresse.
-- Claro, claro...
-- Mas, como ele morreu, a pessoa mais importante para mim, não me importa mais se as outras crianças vivem ou morrem. Só ele me importava. Quando ele era vivo e eu via casos de morte de crianças, eu ficava preocupado, ficava abalado, porque me colocava no lugar do pai daquela criança e não queria que o mesmo acontecesse com o meu filho. Mas agora que ele morreu, eu não sou mais o pai, e de qualquer forma o pior já aconteceu, então eu não tenho mais com o que me preocupar. Como eu não vou mais ter filhos, nunca mais vou ter que me preocupar com o futuro de criança nenhuma. E, além disso, o mundo já está cheio demais, um a mais ou a menos não faz a menor diferença.
-- É, tá, tem sentido. Mas tipo, sei lá, é um jeito um pouco... Sei lá...
-- Frio.
-- Isso, cara, é um jeito meio frio de ver as coisas. Eu não consigo pensar assim. E esse negócio do mundo já tá cheio...
-- Você acha que não?
-- Não, tipo, ter gente demais, até tem... Mas a gente tem que ter filho, né? Tem que ter família.
-- Eu acho que ter filhos é uma das decisões mais egoístas que alguém pode tomar. Eu tive um filho, fui egoísta também. Quando temos filhos, estamos nos rendendo aos impulsos mais primitivos que temos. Somos animais. Estamos nos tornando apenas um vetor para transmissão de genes, como se fossemos máquinas e fossem os genes que nos dominassem.
-- Claro que não, cara. Um cara tem filho quando quer ter alguma coisa de valor com a mulher que ama, sabe, quer ver um molequinho filho dos dois. Pelo que você tá falando, parece que quer que todo mundo pare de ter filho.
-- Mas é exatamente o que eu quero. Sou a favor da auto-exterminação da raça humana. Já que vamos nos destruir de qualquer jeito, então que pelo menos façamos isso sem destruir o resto do mundo.
-- Você diz isso porque nunca amou ninguém.
-- Mas o que é que tem amor a ver com filho?
-- Tem tudo, cara. Quando você ama alguém, você não pensa em mundo, em genes, em porra nenhuma. Você quer ficar com essa pessoa, quer ter filhos com ela. Se for seguir o que você tá falando, ninguém se casava mais.
-- Opa. Agora, você está falando de casamento. Casamento não tem nada a ver com amor.
-- Claro que tem! Casamento é a maior prova de amor que você pode dar pra alguém.
-- Não. Você está confundindo casamento com sexo. Sexo é amor. Casamentos nada mais são do que a autorização social necessária para se procriar. Não importa se você ama a pessoa ou não, o casamento te permite procriar com ela.
-- Espera, espera. Você disse que sexo é diferente de casamento e que casamento serve pra procriar. Só que sexo só existe pra ter filhos, também.
-- Claro que não. O sexo de verdade é a maior prova de amor que você pode dar para alguém. Não tem nada a ver com procriação. Ou você só faz sexo quando quer ter filhos?
-- Claro que não, mas o motivo do corpo querer é aquela parada de genes que você falou, de procriar.
-- Isso é o que te dizem desde que você nasceu, mas não é verdade. Fazer sexo é gritar "eu te amo" o mais alto possível. Pense na masturbação.
-- O que é que tem a masturbação?
-- Você por acaso tenta ter filhos se masturbando?
-- Ah, mas masturbação não é sexo. É só uma parada que a gente faz quando tá carente ou solteiro.
-- E por que os homens evitam se masturbar quando estão comprometidos?
-- Uai, porque tem uma mulher pra fazer pra eles.
-- Se fosse só isso, nós não sentiríamos vontade de fazer enquanto estamos namorando, certo? Mas a gente sente. Duvido que você nunca tenha sentido vontade de se masturbar, mesmo tendo acabado de sair da casa da sua namorada.
-- Já, mas não tem nada a ver. Se for ver assim, a gente quer sexo toda hora.
-- Então, você está se contradizendo. Você acabou de dizer que masturbação não é sexo.
-- Não, não... Cara, como é que masturbação pode ser sexo? Vai transar com você mesmo?
-- Aí é que está. Eu disse que sexo era uma prova de amor. E masturbação é sexo com alguém que você ama. Quando você se masturba, está fazendo amor com você mesmo. Está fazendo sexo com a pessoa que você mais ama na vida. Pessoas que não se masturbam não se amam.
-- Mas mulher não se masturba.
-- Porque mulher não se ama. Pra que serve a mulher? Pra satisfazer ao homem. Mulheres vivem em função dos homens que elas amam, então elas querem fazer sexo só com esses homens. Já os homens nasceram para serem amados, e para amarem a si mesmos. Aquela história de amar ao próximo como a si mesmo é impossível. Homem nenhum ama outra pessoa tanto quanto se ama. E as mulheres sempre amam mais aos outros do que a si mesmas.
-- Cara, pra mim você tá viajando. Eu não consigo entender esse negócio.
-- Não acha que, quando você se masturba, você ama a você mais do que a qualquer outra pessoa?
-- Não, digo, talvez... Mas e se o cara não se masturba? Ele não se ama?
-- Com certeza. Mas nunca ouvi falar de um homem que não se masturbe. Ao contrário das mulheres, que pelo que dizem nem sabem o que é isso. Se o cara não gosta de dar prazer pra ele mesmo, então eu digo que ele não só não se ama, como não sabe o que é sexo.
-- Como assim? O cara tem que ser virgem só porque ele não se masturba?
-- Ele pode não ser virgem, mas não sabe o que é sexo. Ele... Ei!
-- O que?
-- Por que o ônibus entrou nessa rua?
-- Porque é o caminho dele, ué.
-- Esse não é o 502?
-- Não, cara, é o 526.
-- Merda.
Levanto e dou sinal. O ônibus só para depois de cinco minutos. Eu desço num lugar em que nunca estive. Olho em volta, penso no dinheiro que perdi, penso no trabalho, penso no cara do ônibus que nunca vai entender nem metade do que eu disse. E volto a pé, procurando a rua certa.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse conto mistura uma série de pensamentos e teorias loucas que eu tenho ou tive, e usa argumentos bem peculiares para explicá-las e defendê-las. Foram usados também as ideias contidas em um artigo que li recentemente, além de uma frase de Woody Allen ("masturbação é sexo com alguém que eu amo"). A personalidade dos dois personagens, assim como as cenas do início e do final do conto, foram baseadas em pessoas reais e em um acontecimento que presenciei dentro de um ônibus.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

[conto #006] Visões Noturnas

VISÕES NOTURNAS

O homem saiu à rua. A lua ia alta. Estava atrasado.
Noite escura. As luzes dos prédios e postes e carros ofuscavam o céu e não deixavam ver a lua (nem as estrelas). Uma redoma de vidro cobria a cidade. Como podia saber que estava tarde? Não tinha relógio. Calculara? Há muito essa possibilidade lhe era negada. O fato é que sabia, simplesmente – coisas que vêm conosco e não cabe aqui responder.Fugia da luz. Um beco, uma rua, um prédio, outro, outra rua, outro beco. Odiava vias comuns. O óbvio, sempre o óbvio. Nunca encontrara qualquer linha reta em si mesmo. Sempre o certo, o caminho traçado pela régua. Haveria algo reto em sua vida? Algo certo, óbvio, objetivo? Ele não sabia. Quem, então, poderia? O cálice que caíra a um canto, não se sabia quando nem onde? O vinho amargo como o sangue que pulsava em suas veias? Não sabia.
Chegou, jogou-se insensível numa cadeira e se pôs a beber algo à sua frente que nem pedira. Ou talvez pedira – quem era ele, afinal? Mas isso não importava. Essa noite chove pelos cantos.
Um relógio ao longe soou meia noite e as luzes se apagaram. A única coisa a iluminar o lugar era o brilho fosco de sua mente. Lamparinas apagadas bruxuleavam carregando espíritos. Ele pôs a mão no buraco da porta e puxou para si as pílulas.
Um vermelho vivo invadiu o lugar e tochas foram acesas. Estava em um bar. Que lugar é esse, Deus?
O que estava fazendo? Por que era tão importante? E por que o sigo? Na esperança de soprar nele a chama da vida e fazê-lo enfim despertar? Mas que medo tenho de, com este sopro, acabar apagando a chama que lhe resta...
Onde ele está? Percorro todo o bar, não o encontro; deve ter saído sem que o visse. Atravesso as paredes e saio na rua. Posso sentir sua presença, as marcas do sangue que derramou do copo. Sigo pelos caminhos escuros. Encontro-o.
Anda sem destino. Lembre-se, deve se lembrar – não consegue. Tão escuro. Escuro. Ar parado. Chegou, sem perceber, ao porto. Pelo menos é um lugar. Quando criança vinha aqui. Tem, então, um passado? Mas isso já era demais. Caiu no chão e dormiu profundamente.
O dia virá encontrá-lo caído e o levará embora. Uma mulher grita – quem é ela? Ele dorme o dia todo. As cortinas do quarto não deixam entrar a luz. O seu corpo é branco como só a lua poderia ter deixado. Terá ele absorvido a luz? Porque parece brilhar. Um piano toca em algum lugar – talvez nos sonhos. Será no mesmo lugar em que a luz bate? E há cheiro de terra. Filhos. Quem tocará o piano? Todos somos.
Dorme. Alguém sorriu pra você há muito tempo. Hoje você acorda quando o sol se põe. Chorando sangue. O sangue que escorre das cortinas cor de vinho e tinge o piso. Há três cortes no seu peito e posso ver seu coração. Ele põe uma camisa preta para que não vejam sua alma. Fica cada vez mais branco.
Já anoiteceu. Sai de casa. A mulher grita de novo – o que ela diz? Sabe aonde vai. Foge da luz. Becos, ruas. O hotel, velho, sujo. Procuraria alguém? Não. Não há quem procurar. Entrou em um quarto vazio. Sentou-se no chão e bebeu o líquido vermelho que havia na garrafa. Quantas vezes desejara que ali houvesse veneno... Uma voz sussurrava em seu ouvido palavras que ele não entendia. Cale-se, pelo amor de Deus.
Bebia sem ver. Sequer sentia o gosto. A caixa. Atire-a pela janela. Não olhe. Abra. Não abra. Calem-se! Abriu.
O que será hoje pra você? A alma solta do corpo, há tempos que não se entendiam. Os dois discutiam quando sentiu a picada. Pronto, acabou. A dor some, as nuvens adentram o quarto. Paz.
* * * * *
O homem saiu à rua. A lua ia alta. Estava atrasado.


SOBRE A HISTÓRIA

Quando comecei a escrever essa história, a idéia não era fazer um conto, e sim algo bem maior. Queria escrever algo que parecesse ter sido criado sob o efeito de alguma substância alucinógena - embora eu nunca tivesse experimentado nenhuma. Também devia ter um tom bem surreal, meio sonho ou alucinação. Depois de escrever o que seria apenas o início do primeiro capítulo, eu percebi que uma história longa toda feita dessa forma seria muito cansativa, enquanto que, para um conto, era perfeito. Eliminei alguns elementos de continuação, e consegui transformá-la em um conto. Foi escrito no final da minha adolescência, o que explica o tom obscuro e um pouco depressivo, algo que não uso mais - não da forma que usava naquela época.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

[poesia #010] Pedido

Poema escrito por mim em 27 de fevereiro de 2006

PEDIDO

Fique comigo pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Dure apenas um segundo

Se você me beijar por apenas uma hora
Eu vou ser a mulher mais feliz de um mundo estranho

Será que a vida é eterna?

O amor dura o instante de um beijo

Fica comigo pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Dure apenas uma noite

Faz muito tempo que não durmo
E essa noite eu sonhei com você
E – estranho – você me ligava
E pedia pra ser meu mundo
(como se já não fosse ou não soubesse disso)

E ficar com você pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Dure apenas um abraço
E eu sei que seus abraços são eternos

(eu prometo que vou embora agora
se sair daqui com um filho seu)

Você pode me achar louca
Mas eu fico com você pra sempre
Mesmo que o pra sempre
Nunca chegue para mim...

terça-feira, 21 de outubro de 2008

[poesia #009] Poema Noturno

Poema escrito em 01 de agosto de 2005

POEMA NOTURNO

Noite escuro vento ecos.
Sangue.
E nem que as lágrimas corressem eu poderia te salvar.
Grito medo ódio fome.
Morte.
Que me importa quem és ante o brilho dos teus olhos?
Frio...
Luzes.
Todos os anjos aprenderam a voar e caíram plumas sobre mim.
Uivos sono canções.
Tiros.
A lua goteja.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

[poesia #008] Primeira Noite do Fim do Outono

Poema escrito em 02 de junho de 2008

PRIMEIRA NOITE DO FIM DO OUTONO

De vez em quando é apenas uma escolha
o mundo roda de repente
quando estiver voltando
volte pra mim

É apenas uma sombra que se ilumina
isso sopra, isso é vento
apenas uma luz no fim do sonho

Às vezes ela não sabe como é
você nunca teve
não sabe sentir sem amar
Às vezes é só uma noite pintada de vinho

E ela gosta do sabor amargo na boca
ela não quer mas ela quer mais
ela nada em vermelho

Mas não a machuque
é só uma criança na noite
que não tem nada a perder a não ser ela mesma

Quando você voltar
volte pra mim

Sua alma pinga sangue e você ri
você corre para o fim do mundo
você quer cair fundo
Ela não sabe que não há nada lá
e depois das paredes há apenas um mundo vazio

Ela vai parar antes de ir
esperando os outros pássaros

Talvez eu demore um pouco
Talvez eu não volte mais

Tudo o que ela quer é o anjo do outro lado do mar
mas quem a quer
quer apenas uma gota de água

Ela é maior que o mundo e ninguém pode abraçá-la
você é o oceano

Quando quiser voltar, volte
mas volte por mim

terça-feira, 14 de outubro de 2008

[poesia #007] Revelação

Poema escrito em 25 de fevereiro de 2006.

REVELAÇÃO

Quem viveu nas sombras
passa a ter medo da luz
Eu, quando te vi, não acreditei
que você existia de verdade

Eu sonhava com sóis e céus azuis
com explosões de luzes e cores
com risos e alegria infinitos
Eu sempre acreditei que o amor fosse branco
ou vermelho
Mas você apareceu no escuro
em meio às sombras, negro,
como uma estrela

Hoje as estrelas caíram do céu
e minha alma se tornou eterna
se eu pudesse te tocar, talvez você soubesse
o que eu sinto

Foi numa daquelas noites
em que ninguém vê o sol
e estava tão escuro
e você chegou, alvoreceu
a noite
Você nunca esteve tão perto
mas eu nunca te senti tão longe...

Queria te levar
pra onde só eu pudesse te ver
Queria te tocar
pra saber que você existe e é verdade
que eu ainda estou viva

Naquela noite, as luzes falaram pro mundo
que você brilha ainda
e a vida inteira não era nada
porque de nada servia a minha existência
antes de ter te conhecido

Me desculpe se você não entende
minhas palavras; são poucas
as razões
mas eu só queria
que você soubesse
que os meus dias se tornaram ainda mais vazios
agora que você não está comigo
como sempre...

Era mais fácil te esquecer quando eu não sabia que você existia.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

[conto #005] Sobre o Mar

SOBRE O MAR

Ele estava me esperando no lugar de sempre. Tinha os olhos perdidos sobre o mar e nenhuma expressão em seu rosto. O dia estava da cor do gelo.
-- Demorei?
-- Não.
Silêncio, não fosse as ondas abaixo de nós. Eu queria dizer algo, mas tinha medo. Sabia porquê estávamos ali.
-- Eu...
Mas ele fez um sinal para que eu me calasse.
Quanto tempo passamos ali, eu e ele, em silêncio? Dez, quinze, vinte minutos. Mas pareceu uma vida. Sei que a areia era branca e a água do mar era dourada e azul. Sei que havia apenas as nossas pegadas na areia. Sei que me lembrei.
Lembrei... Lembrei de tudo, desde que o conheci. Nós dois tão sozinhos, e estava tão frio. A noite era escura. Ele me tomou em seus braços e me mostrou o mundo.
E agora, o silêncio.
-- Você sabe por que eu te chamei?
Balancei a cabeça. “Não”. Mas é claro que eu sabia.
-- Eu gosto muito de você. Você sabe disso. Mas você também sabe que isso não pode continuar.
Agora, o silêncio vinha de mim.
-- Não pode, entende? Não é certo. Isso tem que acabar.
Quando eu falei, minha voz era uma onda de tristeza e lágrimas.
-- Você quer terminar tudo comigo?
-- Não quero. Mas preciso.
Também havia lágrimas na voz dele, mas elas eram cristalinas. As minhas eram pesadas e negras.
Chorei com a cabeça baixa, o rosto oculto em minhas mãos. Sabia que ele estava fazendo o que era certo. Sabia também que ele nunca mais me acolheria em seus braços. Nunca mais me consolaria. O desespero fluiu para minha garganta.
-- Você é o homem da minha vida.
Não queria ter dito aquilo, não queria tornar tudo mais difícil. Mas era impossível controlar minha tristeza, e ele compreendeu.
-- Você também. - senti ele tocar meus cabelos carinhosamente, como fizera tantas vezes antes – Você também é o homem da minha vida.
Continuei chorando, mas minhas lágrimas foram diminuindo conforme ele tocava minha cabeça, meu pescoço, meus ombros. Foi a última vez que senti aquele toque.
-- Eu te amo.
Três palavras que pareciam tão límpidas vindas dele. Eu conseguir erguer o rosto e olhá-lo novamente. Também havia lágrimas em sua face.
-- Eu também te amo.
-- Mas não pode ser. Você sabe.
-- Eu sei.
Demos nosso último abraço, nosso último beijo. Ele se foi, e eu continuei sentado na areia, desejando mergulhar para sempre no mar. Mas não o fiz.
Nós tínhamos doze anos.


SOBRE A HISTÓRIA

Essa história não ficou tão boa quanto eu achei que ficaria, mas decidi publicá-la mesmo assim. A escrevi em homenagem a dois garotinhos muito especiais, que não vejo há algum tempo, mas dos quais tão cedo não me esquecerei. E as falas foram baseadas em uma conversa que eu mesma tive com um garoto, aos nove anos.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

[poesia #006] Talvez (ou Aquilo que Deveria Ter Sido Mas Nunca Foi)

Poema escrito em 28 de fevereiro de 2006

TALVEZ
(ou AQUILO QUE DEVERIA TER SIDO MAS NUNCA FOI)


Se me perguntares o que sinto, te respondo:
não sei.
Queria a eternidade de seus beijos infinitos
Queria te abraçar todo o tempo que me resta
(e me resta muito pouco...)
Hoje, não quero mais.
Será que um dia minha alma encontrará a sua?
Importa isso pra você?
Talvez não, mas você não sabe
como seria a vida se você me conhecesse.
Você não sabe que eu atravessaria o mar e lutaria com todos
só pra te ver dizer
que não.
Que nada do que eu faça vai mudar os fatos
Que eu te conheci muito antes de nascer
E que você esperou demais
E que eu não tive forças para vir quando você me queria
Quando você precisava tanto de mim
E outras gotas, de outros mares
choveram sobre ti para te acalentar
A única coisa minha que resta em você
é essa lágrima opaca que desce por seu rosto...

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

[poesia #005] Fim de Tarde

Poema escrito em 14 de maio de 2008

FIM DE TARDE

Hoje o céu era vermelho-sangue
eu mergulhei nas nuvens
havia uma gota de sangue no canto dos seus lábios
querido, você se lembra
como as flores se tornaram negras?

Havia um pedaço do chão nos seus olhos
um pedaço pequeno,
mas algo.
E estava lá.

Um dia seus lábios tocaram os meus
havia algo bom naquilo
antes de morrerem os sonhos

Colocaram fogo nos campos de bruma
e você estava lá
no meio,
com fogo nas mãos

Hoje o céu era vermelho-sangue
o seu sangue
eu abri a boca e bebi as gotas vermelhas de chuva
e o gosto era amargo pelo medo

Meu amor, um dia alguém disse
que sentir era pecado
você arrancou seu coração do peito e o atirou no mar.
No céu.
Nas pedras.
Mas ele sempre voltará pra você.

Agora você esconde seus erros
mas há marcas minhas em você
como quando queimamos juntos.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

[conto #004] Princesa, Anjos, Lua

PRINCESA, ANJOS, LUA

Um anjo nasceu no meio daquela estrela. Era a estrela mais alta e mais brilhante do céu. Dela, o anjo saiu. Pequeno e sem asas, escorregou até a lua e lá se sentou, olhando a Terra. Ficou muito tempo olhando, mas lá todos eram iguais, e ninguém era como ele. E ele disse:
-- Por que estou aqui?
Na lua morava uma linda rainha, que todos chamavam de Mãe. E Mãe foi até o anjo e o pegou no colo e disse, com uma voz celeste:
-- Você é um anjo sem asas; do céu nasceu mas no chão ficará.
-- Por quê?
-- Porque, lá embaixo, uma princesinha surgirá. E ela esperará por você.
-- Mas onde ela está?
-- Ela ainda não nasceu, porque você ainda é pequeno. Quando você percorrer a metade do seu quinto ano, ela nascerá.
E Mãe contou uma longa história ao anjo. Contou que ele nascera para cuidar da princesinha, e que ele seria a luz que a guiaria. Contou que a princesinha o amaria acima de tudo, e que ele também iria amá-la.
Contou que na Terra havia muitas princesas, e que ele podia amá-las também.
Mas também havia muitos anjos, e a princesinha não poderia amá-los.
-- Porque – contou a Mãe – se a princesinha amar outro anjo, começará a se esquecer de você. E se outro anjo se tornar o anjo da princesinha, você deixará de existir.
Porque o anjo só existia para cuidar da princesinha.
E o anjo desceu para o chão, e lá esperou. E muitas luas passaram e muitas estrelas surgiram, e o anjo esperava. E o anjo crescia, e verões passavam.
E no meio do quinto verão que o anjo via na Terra, nasceu a princesinha.
Foi na vigésima segunda hora do segundo dia do segundo mês. Um choro de menina acordou o anjo de um sono profundo.
-- Mãe! Mãe! - chamou o anjo, assustado – Quem chora?
-- É a sua princesinha. - disse a Mãe, da lua – Ela acabou de chegar. Vá vê-la.
Então o anjo entrou no castelo, e lá encontrou sua princesinha. Pequena e com brilhos de lua, em um berço dourado de sol. E eles passaram a se amar.
Princesinha cresceu, e não havia nada que ela amasse mais do que seu anjo sem asas. Os dois brincavam juntos pelo mundo, e o anjo cuidava da princesinha e lhe contava histórias do Céu e da Terra. E os dois cresciam.
Mas um dia o anjo conheceu outras princesas, e as amou. E lágrimas caíram dos olhos prateados da princesinha, porque ela nunca amara outro anjo. E ela perguntou ao seu anjo sem asas:
-- Por que você me traiu?
-- Não traí você, disse o anjo, apenas quero conhecer o mundo.
-- Podemos conhecê-lo juntos.
-- Mas você não pode ir comigo para o outro lado, porque é uma princesa e aqui é seu reino.
E o anjo atravessou o mar, ao encontro de novas princesas.
Princesinha chorou sozinha, por achar que seu anjo não a amava mais.
Passaram-se sóis e luas, e muitos verões. Princesinha cresceu, cresceram os jardins do palácio. Andando por eles, princesinha encontrou um anjo azul.
-- Brinca comigo, ela pediu. E ele atendeu.
E o anjo azul passou a brincar todos os dias com a princesinha. E a cada dia que passava ele roubava um pedacinho de seu coração.
Chegou o dia em que a princesinha passou a amar o anjo azul, seu coração se esquecendo aos poucos do anjo sem asas.
Do outro lado do mundo, cercado de outras princesas, o anjo sem asas sentiu seu coração começar a se desfazer, porque outro anjo estava se tornando o anjo da princesinha. E ele chorou, porque ainda a amava mais do que tudo.
-- Mãe – ele chamou – minha princesinha está deixando de me amar. O que faço?
-- Volte para junto dela, disse a Mãe, porque ela ainda se lembra de você. Mas, se ela o esquecer, você se desfará.
O anjo foi para o mar, reencontrar sua princesinha. Mas ela, nos distantes jardins de seu palácio, esquecia o anjo sem asas e amava o anjo azul cada vez mais.
E o anjo sem asas se desfazia, e perdia as forças. As ondas do mar o afogavam, e ele era levado pela correnteza. Chorando por sua princesinha perdida.
Um dia, quando princesinha brincava à beira do mar com o anjo azul, uma onda trouxe um anjo sem asas. Ele era quase como areia, invisível, e se desfazia com o vento. Princesinha o viu, e reconheceu aquele que fora seu anjo.
-- Anjo, ela disse, o que aconteceu com você?
-- Estou morrendo, disse o anjo triste, porque você não me ama mais.
-- Não! Eu te amo ainda, e não te esqueci!
Mas o anjo azul se aproximou, e disse:
-- Mas você também me ama agora, porque ele não soube te amar, e te abandonou. Deixe-o se desfazer.
-- Não posso! - disse a princesinha, com lágrimas nos olhos. Porque ela não podia perder alguém que tanto amara.
Quando tudo parecia perdido, a lua surgiu no céu de estrelas. Sobre um cavalo de prata, Mãe desceu para a Terra, indo pousar naquela praia, ao lado da princesinha e dos dois anjos que ela amava.
-- Mãe... - disse o anjo sem asas – Eu vou morrer?
Mãe desceu de seu cavalo. Beijou princesinha, dizendo:
-- Ouvi seu coraçãozinho chorando, e vim te ajudar.
-- Mãe, por favor, salve o meu anjo, porque eu o amo. Fui má por amar dois anjos, e ele foi mau por amar outras princesas. Mas todos nós somos crianças, e as crianças sempre têm perdão.
-- Vocês não foram maus. Só esqueceram de que são responsáveis por quem os ama. Nunca mais se esqueçam disso.
Então Mãe pegou o anjo sem asas no colo, e cantou uma canção para ele; e uma luz surgiu de dentro dele, e iluminou o mundo.
Quando a luz se dissipou, o anjo se transformara. Seu corpo era agora da cor dos olhos da princesinha, e era a mesma cor da lua e do céu. E agora ele tinha asas, grandes asas prateadas, e delas caía o pó das estrelas.
-- Meu anjo, como você se tornou lindo. - disse a princesinha.
-- Me tornei assim por você, ele disse, e a abraçou.
-- Agora, disse a mãe, você é um anjo do céu, e no céu ficará. E de lá sempre olhará por sua princesinha. E ela ficará aqui na Terra, com o anjo azul.
O anjo beijou princesinha, e voou de volta para a estrela mais alta e mais brilhante do céu. Atrás dele restou uma trilha prateada, que nunca se desfez.
Na Terra, agora, a princesinha vive com o anjo azul. E, no céu, o seu anjo olha para ela, e a ama e a protege.
Eternamente.


SOBRE A HISTÓRIA

Esse conto foi quase todo escrito durante uma aula de Geometria Analítica (!!!). Começou inspirado em contos de fadas e em algumas pessoas que conheço, mas acabou seguindo um rumo totalmente diferente. Uma pequena homenagem a amigos de vários tempos e a mim mesma. Foi a primeira história com temática infantil (ou conto de fadas) que escrevi.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

[poesia #004] Fato Estranho

Poema criado por mim em 06 de julho de 2005

FATO ESTRANHO

Eu sou virgem e tenho um filho
Filho de um pai que morreu
Não me perguntem como foi
E nem como aconteceu.

Quando vi estava lá
Tendo nos braços um filho
Vi o sangue do seu pai
Escorrendo junto ao trilho.

Eu fui, ele ficou
O amava sem amar
Sonhando em ter seu corpo
Acabei sem o abraçar.

Não sei como tive um filho
Se ele em mim nunca tocou
E morreu antes de ver
O filho que se criou.

Mas a verdade é que o amo
E pra sempre o amarei
Mesmo sem ele ao meu lado
E do filho que criei.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

[poesia #003] Anjo Antigo

Poema criado por mim em 30 de novembro de 2006

ANJO ANTIGO

Havia algo estranho na sua existência
Algo irreal na sua beleza
Algo surreal
Como se você fosse parte de um quadro antigo
Pintado com tintas que não existem
Por um pintor anônimo
Algo naquela paisagem
Na aura abstrata ao seu redor
É como se você não estivesse ali
Ou estivesse atrás de um espelho
Não sei ao certo o quê
Talvez os seus olhos muito claros ou sua pele
Branca...
Tão branca
Que não poderia existir
Ser real.
Isso. Um ser irreal.
Um príncipe de contos de fadas
Vestido ao contrário
Ou quem sabe uma nuvem
Passando calma e suave no céu
Que de repente se transforma em chuva
E chove tudo ao seu redor...

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

[conto #003] Noite de Paz

NOITE DE PAZ

Já são onze horas da noite, e a rua não para de encher. Milhares de pessoas indo atrás dos carros que tocam axé e funk. Um bando de filhos da puta, ficam pulando igual a macacos. Daqui de cima parecem animais em fúria, uma manada na época do cio.
Eu ainda espero. Está quase na hora.
Fecho a janela para tentar abafar o som, mas é inútil. Ando pelo apartamento. Não foi difícil encontrar este, a maioria dos prédios fica quase vazia no carnaval. Ninguém consegue suportar a bagunça, o som, a loucura. É o caos.
Este, em particular, foi posto para alugar há duas semanas. Décimo segundo andar, vista estratégica, perfeito. Peguei as chaves na imobiliária, fiz uma cópia, e pronto. Fácil, muito fácil.
Vou de novo até a janela. Meia noite e meia. Com o binóculo vejo as pessoas lá embaixo, naquela massa humana que se estende por quilômetros. Um homem vestido de mulher. Uma preta seminua que se esfrega nos outros como uma cadela. Um casal transando atrás de um poste. Uma mulher com os seios à mostra e um bebê no colo. Crianças pulando em cima dos carros que tentam passar, batendo nos vidros. O som é mais alto do que nunca.
Hora do show.
Verifico as armas. Penso em começar com a metralhadora, mas seria muito rápido. Melhor o fuzil, silencioso e eficiente.
Já estou de luvas desde que cheguei. Prendo o cabelo, coloco a touca cobrindo o rosto e o boné. Ninguém vai saber se foi uma mulher ou um homem.
Armo o fuzil e vigio as pessoas lá embaixo pela lente. Miro primeiro em um travesti, mas mudo para a mulher com o bebê. E atiro.
O tiro acerta a cabeça da mulher, abrindo um buraco do tamanho de uma bolinha de beisebol. Ela cai, o bebê também, as pessoas gritam, começam a correr. O bebê vai ser pisoteado, mas a culpa não é minha, é da vaca da mãe. Miro agora em um homem gordo vestido de mulher, e dou dois tiros só pra garantir.
A bagunça começa, os animais não entendem o que está havendo. Uso o fuzil uma última vez, e acerto a tal preta vadia, bem no peito, que explode como um balão. Hora de mudar.
Ainda vai levar uns minutos para perceberem de onde vêm os tiros. Pego a metralhadora e atiro uma rajada de balas, que varre a rua de leste a oeste. O ruim é que a metralhadora não tem mira, não posso ver o rosto das pessoas. Atiro na direção de um grupo de crianças: é bom abatê-los antes que atinjam a idade reprodutiva. Pelo menos três caem, outros são pisoteados. Atiro de novo, atinjo quatro casais que transavam entre os carros.
Toda a multidão se desespera, correm de um lado para o outro como loucos. Há uma massa de sangue e corpos esmagados por todo lado, e essa visão me excita. Finalmente, atiro nos carros de som. Um deles explode de forma cinematográfica, e eu sorrio. A visão é linda, todo o sangue e o fogo e os gritos daquela escória. Uma verdadeira limpeza para a raça humana, que morram todos esses desgraçados.
Uso a metralhadora mais umas três vezes, acertando as pessoas mais distantes, e por fim dou minha missão por encerrada. Agora, eles mesmos vão terminar o trabalho: sei que os mortos pelo tumulto serão em número muito maior do que os que eu matei. Guardo as armas na bolsa e subo para o terraço do prédio.
Lá de cima admiro o espetáculo por mais um tempo, até que os carros da polícia começam a chegar. Rio, com pena dos pobres policiais: vai demorar horas para controlarem os animais, e mais ainda para descobrirem o que aconteceu.
Desço tranquilamente pela escada de incêndio, indo parar em um beco. Tiro o boné, a máscara e a roupa. Estou com um micro short e uma blusa por baixo, posso me camuflar entre as piranhas. Guardo a roupa na bolsa, junto das armas, e deixo tudo em um canto. Não pretendo pegar de volta, e não há nada ali que possa levar a mim.
Não posso passar pela rua, por causa do caos. Ouço tiros: melhor do que planejei. Entro em um beco, e vou passando por trás dos prédios até chegar ao meu.
Entro no meu apartamento. Não há mais aquela música infernal, apenas os gritos e tiros, que não durarão muito. Tomo um banho e vou dormir; agora, aquela é uma noite quase tão tranquila quanto as outras. E durmo, como um anjo.


SOBRE A HISTÓRIA

História escrita após uma experiência ligeiramente traumática envolvendo um sábado de carnaval, uma volta para casa fora do horário planejado e homens travestidos. Para aqueles que acham que estou incentivando a violência: imagina, eu jamais faria isso. Para aqueles que acham que sou psicopata: não se preocupem, na vida real eu não tenho acesso a todas aquelas armas citadas no conto. Ainda.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

[poesia #002] Quinze Anos

Poema criado em 24 de outubro de 2006

QUINZE ANOS

Quem me dera que só uma folha pousasse no rio
Às vezes eu me pego calada, olhando o vazio
(O sol não vai mais nascer.
Será frio para sempre.)

O tempo parou e passará novamente
As cordas que tocam são como serpentes
(As notas calaram.
O mundo silenciou.)

Há flores azuis caídas nas águas
E às vezes eu sonho com as pessoas erradas
(O mar transborda.
A alma evapora lentamente.)

O crepúsculo lembra as antigas saídas
Eu queria que no lugar de fantasmas houvesse vidas
(Para onde foi?
Onde estará?)

O brilho do sol não me deixa ver aquilo que está no céu
Eu ficava sentada no chão, segurando um papel
(Eu queria dizer.
Eu queria muito dizer.)

Me banhava em tintas para parecer com os pássaros do prédio
Como era longa a vida das crianças do ensino médio!
(Tudo cria asas.
Tudo voa.)

Abrem os portões do palácio e príncipes chegam em carruagens
As folhas verdes te encantam mas eu sonho paisagens
(Os fogos explodem.
Tudo é negro.)

Não vou deixar ninguém passar nos caminhos que são só seus
E você me fez descobrir que eu não acredito em Deus
(Eu fico esperando.
Não há ninguém.)

Passar as tardes nas listas procurando pessoas
Que saudade de quando acreditava que existiam coisas boas
(Começou a chover.
Está quente, muito quente.)

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

[poesia #001] Lembranças

Poema criado em 01 de julho de 2005

LEMBRANÇAS

É engraçado como um sorriso pode machucar
E, às vezes, ficamos tristes sem motivo
Eu queria tanto...
Eu queria voar...
Eu quero lutar contra o frio mas estou no meio da tempestade
Ontem eu descobri que podia andar
Mas desisti no primeiro tombo
E papai (do céu) ficou triste
Não acredito em Deus mas rezo todo dia para a Mãezinha
Porque ela é bonita como minha mãe.
Mãe, isso faz tempo,
Mas ainda tenho medo do escuro.
(se Ele é por nós, quem será contra nós?)

Vovó falou dele e eu não entendi
Talvez por isso eu não vou pro céu porque, por que será? Eu tenho medo
Será que um dia...
(um pássaro pousou na janela mas não era verde e era bonito, tão bonito que colocaram ele numa gaiola de ouro e ele morreu e jogaram fora)
Hoje não.
E o sangue não é nada pra mim
O que importa o que está havendo se eu estou triste, tão triste
Que choveu quarenta dias e quarenta noites e Ele
(quem é Ele, meu Deus, me diz)
Lavou as ruas com o sangue e colocou minha alma de volta
Mas eu não queria voltar, eu juro
Me deixem, me deixem sair! Por favor...
Estou perdida num lugar que eu conheço
Uma gaiola tão pequena que eu nunca consegui encontrar o fim
E o céu não era céu
E não havia nuvens
E não havia lua
Nem sol
E nem estrelas
Pra onde a gente vai depois?
(Eu sei que é mentira, mas o que posso fazer?, eu acredito)
Como eu queria...
Ia ser mais fácil...
Se eu acreditasse, mas são tantas coisas e tanta gente e tantas verdades que ninguém pode estar certo, não, não pode, não é? Me diz

Por que você ficou quieto de repente?
Ele parou de falar com os outros, mas comigo ainda fala
E fala com mais alguém mas disso eu não sabia
Só fiquei sabendo depois
E tem mais, muito mais
Mas ninguém sabe e mesmo que soubessem não acreditariam
Porque ninguém mais vê o que eu vejo
E eu não vejo mas eu sinto
E sentir é melhor do que ver
Do mesmo jeito que eu sentia antes, mas eu não sabia
Que só eu sabia o que eu sei e é estranho, é muito estranho
Porque eles são adultos e eu não e eu sei muito mais do que todos eles juntos
E tem tantas coisas mais importantes do que isso mas eles não sabem, eles nunca vão saber
Por que eles não vêem
E é bonito e eles não sabem
Que ontem um anjo veio pra mim
E me abraçou e disse que me amava
E eu queria tanto...
Por que ninguém me ama? Por que eu amo tanto todo mundo e sem motivo?
Será que o problema é ele
Ou os outros...
Ou será que sou? Mas parece que foi ontem que eu voei pela primeira vez
É assim mesmo, você me disse
Fecha os olhos e durma, que passa...
Boa noite.

domingo, 10 de agosto de 2008

[conto #002] Memórias

MEMÓRIAS

Hoje minha casa cheira a mofo mas se eu tentar ainda posso sentir o cheiro dele, cheiro de colônia e suor e areia, ele sempre tinha um cheiro doce e salgado. E sexo, ele cheirava a sexo, emanava paixão por todos os poros. Eu gostava daquele cheiro.
Tudo o que resta de cor agora são os retratos desbotados na parede. A poeira cobrindo os móveis. Pra que tudo isso, meu deus? Ele dizia isso e ria porque não acreditava em Deus. Em um dia frio, ele levou nossa mesa de jantar para a praia e pôs fogo nela. Não precisamos de mesa pra comer. E nem podemos comer a mesa.
Mamãe dizia que ele não tinha futuro. E não tinha mesmo, mas eu gostava de seus cabelos compridos e dos seus olhos escuros e do jeito que ele tocava e ria e corria e gritava como se fosse louco, ou como uma criança no auge de suas forças. Eu gostava da força que vinha dele porque era viva, e quase me fazia ser viva também porque eu girava em torno dele, lenta dança de sol e terra.
Não há mais vida agora, apenas a luz pálida daqueles dias. Veio o diploma que hoje está empoeirado na parede, vieram o trabalho, as roupas, as reuniões. Tudo tão escuro mas parecia certo. E ele, tão feliz com suas roupas simples e suas cores e seu violão e seu cabelo comprido, o lado errado da minha vida.
Tomo mais um gole de vinho e me lembro de nós dois dançando em volta da mesa em chamas como numa festa de julho mas era outubro, não que realmente importasse. Não sei quanto tempo o fogo durou mas sei que já tínhamos feito amor mil vezes e ele continuava aceso, lento crepitar.
Ele me dava comida e sua casa e seu amor, mas minhas amigas tinham vestidos e perfumes e joias caras. Minhas amigas tinham noivos e grandes festas de casamento e bailes e festas. E ele não podia me dar isso.
Não sei quando foi que vim para esta casa, nem quando as coisas se cobriram de pó. Só sei que um dia ele se foi. Eu o mandei ir e ele foi, levando seu violão e seus olhos escuros. Foi porque me amava, e não podia me dar o que eu queria.
E eu tive, tive tudo, as joias, os vestidos, as festas, o marido. E tive essa casa e esses móveis e uma mesa de jantar, e nós não dançamos em volta dela. E a vida que eu tinha tomado de meu jovem amor foi indo embora, esvaindo-se, sublimando como gelo em direção ao céu. Restou só a casa, e as joias, e o pó.
Ele morreu há três dias.
Pouca coisa restou agora de mim. É quase como se eu fosse essa casa, grande, rica, cheia de móveis, mas tão vazia, tão cheia de pó.
O vinho evapora do copo. Eu assisto a ele ir embora, assim como você foi embora, assim como a vida foi embora. Até que não restará nada, em mim e em lugar algum.


SOBRE A HISTÓRIA

Tentei fazer esse conto baseado em outro, fantástico, cujo autor não me lembro. Não consegui. Apenas a ideia da história ficou parecida, mas o ambiente, o clima, e a emoção transmitida com a narração, não chegaram nem perto do que eu pretendia ou do original. Apesar disso, não ficou um conto tão ruim assim, por isso resolvi publicá-lo.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

[conto #001] A Mulher Perfeita

A MULHER PERFEITA

Ele estava arrumado e limpo e pronto pra sair, a gravata azul apertando seu pescoço de advogado formado há vinte anos, o terno preto revestindo sua empáfia de moralista. Quando abriu a porta, deparou-se com uma cabeça no chão.
Era uma cabeça, não havia dúvidas, e estava sobre o tapete importado. Ele – o homem, não o tapete – cutucou aquela peça bizarra com o pé. Sim, era real, uma cabeça loira de mulher. Na tentativa de ver o rosto ele a inclinou com a ponta do pé, e isso a fez tombar e sair rolando pelo corredor. Ele correu atrás dela desesperado e a alcançou antes que caísse pela escada.
Só depois percebeu, com horror, que estava com a cabeça nas mãos. Era macabro, mas agora já estava feito e ele pigarreou e a analisou pela primeira vez. Era uma cabeça bonita, loira, boca bem feita, olhos verdes muito abertos a encará-lo como se pudessem vê-lo.
Enfim, ele estava atrasado. Correu para dentro de casa, pôs a cabeça em cima da mesa e saiu para o trabalho. Tinha que defender um cliente importante ainda naquela manhã, e nunca se atrasava.

* * * * *

Ele abriu a porta e entrou e deu um grito ao se deparar com uma cabeça sobre sua mesa de jantar. Mas logo se lembrou de que fora ele mesmo quem a colocara ali, e voltou à sua compostura habitual.
Tinha que fazer algo em relação àquilo. Não era recomendável jogá-la no lixo. Podia levá-la a um terreno baldio ou jogá-la no rio. Mas, afinal, era uma cabeça bonita, e ele estava se sentindo sozinho com a sua. De forma que a guardou dentro do guarda-roupas.
Conviviam bem, ele e a cabeça. Ele chegava do trabalho, abria o guarda-roupas e passava horas conversando com ela. E ela nunca o interrompia.
Quando ia trocar de roupa, ele a virava para o fundo do móvel. Era, afinal, um cavalheiro. O homem, não o móvel.
Um dia, quando abriu a porta, deparou-se com um braço. Não pensou duas vezes: o pegou, colocou ao lado da cabeça e saiu para o trabalho. Afinal, nunca se atrasava.

* * * * *

Os pedaços começaram a chegar, sem ordem ou regularidade aparente. Uma perna, um pé, o outro braço, a outra perna. Ele esvaziara um lado do guarda-roupas para poder guardar as peças. Gostava de manter a cabeça perto do resto do corpo.
A última parte a chegar foi a mão esquerda. O homem deu pulos de alegria ao ver que tinha ali todas as partes do corpo. Tirou-as do guarda-roupas e as espalhou pelo chão da sala. Pegou a linha, a agulha, e começou a costurar.
Naquele dia o homem não foi trabalhar. Nem no outro. E nem no outro. Na noite do terceiro dia de trabalho ininterrupto, ele deu o último ponto na costura e cortou a linha. Estava pronto: agora, no chão da sala, havia um corpo inteiro de mulher.
Ele pegou a mulher no colo e a levou para a sua cama. Agora, não precisaria mais dormir sozinho. E ela nunca lhe negava nada.


SOBRE A HISTÓRIA

Essa foi um dos primeiros contos com temática surrealista que escrevi. Baseado em nada além da minha imaginação insana, foi escrito em apenas um dia, em um ritmo bem frenético, passando apenas por uma leve revisão antes de ser publicado. Todas as pessoas que o leram antes da publicação não apreciaram a ideia, mas eu simplesmente adorei, e imagino que as (poucas) pessoas com um pensamento parecido com o meu também o apreciarão.